sexta-feira, 2 de abril de 2010

Naquela Esquina

Naquela Esquina

Na manhã enfarruscada da cidade grande penso neles. A recordação permanente de pessoas e lugares que nos pertenceram um dia traz uma ponta de tristeza. Bom não é. É algo que não volta. Não sei se vivemos ou morremos um pouco. Não guardo na memória os nomes de ruas. As pessoas são mais importantes do que os logradouros. As ruas e as duas praças são identificadas pelos seus moradores. .A antiga Praça da Bandeira, por exemplo, a esquerda da casa de meus pais morava o Joaquim Mateus de Lima, o Vice, D. Aparecida, a Cecília, a Detinha, minha segunda família. Na esquina o Benedito Naves, antiga Casa Paroquial, onde nela habitou o lendário Cônego Macário. No quarteirão de frente a Matriz, o João do Yê e Yê, e uma pequena casa, com um grande quintal., perto do compadre Joaquim Ribeiro. Na parte de cima, um esqueleto de prédio que seria um dia hospital. No meio do quarteirão morava o João Neves e a Clara e os filhos que foram chegando. Quase na esquina, a família do Antonio Evódio, exímio carpinteiro, com Dona Iria e filha única Terezinha. . Atrás da catedral, onde mora a Maria Ignez, havia uma casa emendada com bar. Por ali passaram heróis de várias gerações pelos picolés e sorvetes que fabricavam: Orestes e D. Benedita, seus filhos: Juarez, a Carmen Lúcia e o João. Depois o Antonio Arantes, pai do Toninho, da Márcia e de outros. A Carime e o Maranhão vieram depois. A casa da D. Lâmia do Zé André, efusiva e alegre. A venda que não vendia. Alegria dos moleques, porque só na D. Lâmia tinha figurinhas carimbadas. Seu Zé André, cego, sua figura respeitável, embranquecida, sentado, contando seu terço de olhos de cabra, zelava pela venda vazia de pessoas e mercadorias. O quintal com horta e pomar fazia a festa da molecada crescida. Suas mangueiras imponentes serviam também aos que passavam pela rua ao lado, perto da casa Elias Felício, Yone e os filhos Zaine Santo Antonio, Jesus e a menor Lurdinha. A chegada do Abrão, do Manir, do Aziz, do Bimba de São Paulo contagiava a vizinhança. Um acontecimento. No banco da Matriz, debaixo das árvores, perto dos sinos, as infinitas histórias da capital. Dona Lâmia, a mais feliz e orgulhosa das mães. Encontro dos irmãos dos paulistanos com a Maria, o Timier, o carque descalço, a Mune, a Karime, a Maria casada com Maranhão. Qualquer festa na Igreja Matriz era uma grande festa. Na outra esquina, morava o Luiz Cury e Amaline, com uma venda que foi sorveteria , empório e outras coisas. O açougue emendado com a casa. . O Neca com seu capote singular trazia “carne” no carroção da Prefeitura. Uma casa de portas abertas. A alegria contagiante estampada nos rostos do Naim, Nenê, Nenzona, Fábio e Manife e ainda a Catarina, ampliavam ainda mais a moradia democrática. O café requentado com o sabor de felicidade. No casamento da Duche- o baladê, uma festa árabe. Tio Elias, Tuíca e Salim. Verdadeiros homens livres, sem amarras dançavam como heróis de seu tempo. Bem perto, residia o Eduardo Belutti, com D. Irani e seus filhos Elza, Elma, Erasmo. Os ternos de Moçambique e Congadas inundavam casas e quarteirões no mês de Setembro, misturando poeira e sonho.
A esquina. Aquela esquina. Uma universidade popular. Discutia-se tudo: futebol, política nacional e local. Na loja do Zeca a meninada aprendia torcer pelo verde. Até hoje alegriense é quase sinônimo de palmeirense. Caravanas de empreiteiros, colonos, sitiantes, trabalhadores rurais de todos os lugares faziam suas compras na Loja do Zeca. O pagamento era anual.Tudo anotado no livro preto, na base da confiança. Não havia inflação. E no pagamento vários brindes e até terno, dependendo do freguês. A Iraíde fazia tricô e cuidava do casarão como se fosse um palácio. A ida do Zeca a São Paulo, de jardineira e guarda-pó, o assunto da cidade. Foi comprar seu primeiro carro com mais 40 anos. Primeiro foi um Ford velho, depois um Cinca chambord e mais tarde um aero Willis até chegar num Wokswagen vermelho Seu carisma fazia dele o líder político da cidade. Sua loja fervia futebol e política. Por ali passaram políticos famosos, até Governador. De frente ao Zeca, a Venda do João, tão popular quanto o Zeca. João com uma generosidade do tamanho do mundo, uma bondade quase ingênua, nunca aprendeu a dizer não Quando foi para outras paragens deixou muitos órfãos e com lágrimas nos olhos. Nos dois lados a leitura obrigatória dos grandes jornais de São Paulo: Folha, Estadão, Diário de São Paulo, e a Gazeta Esportiva. A venda e a loja eram separadas. Ambas eram palcos de imensos debates. Ia da política ao futebol. Os dois comandavam o Santo Antonio Esporte Club. As bolas e os uniformes ficavam no reservados da venda ou da loja. Tentaram jogar futebol. Não foram bem sucedidos. Jamais admitiram a pecha de pernas de paus. Tornaram-se dirigentes e torcedores. Em ambas as casas, os mais pobres encontravam abrigo, amizade e proteção. Nada era negado. Na casa do Zeca nasceram Maria Ângela e Carlinhos, cuidados como príncipes. Do lado do João com a Tata chegaram Zezé e Marquinhos. Na diagonal morava “seo” João Meziara – o João Alegre. Quando fiz 18 anos – ele me disse: agora você é cidadão. Pode votar. Entendi o sentido da palavra cidadania.. A D. Nígima, o Aziz, o Pirilo, a Maria Helena, o João Bosco e a Regina, emolduravam os dias daquela esquina irriquieta e rica. Do outro lado, o tio Zé Ayub, pai do Moisés, cujo nome correto era José Calixto,. comerciante, circunspeto, com olhar bondoso. Na verdade duas vendas, uma na frente, na com pouco movimento e outra nos fundos, o depósito, onde tia Mariquinha atendia seus “fregueses”: as pessoas mais pobres da cidade. A maioria vinda das “Canequinhas”. As mercadorias doadas pela tia Mariquinha eram maiores do que as vendas de meu tio. Ali estavam o Moisés, a Lesli e os filhos que começaram a chegar: Fernando, depois o Neto e o João. Um pé de caju no quintal e várias chaleiras de café e chá na cozinha dos fundos. Uma cozinha comunitária. Todos entravam sem cerimônia na busca de um café quente, requentado ou frio. A noite, Seu Augusto Português, o amigo, vinha infalivelmente para a novela que ouviam “no Rádio”, uma reunião solene, ambos vestidos de palito..
Passo por aquela esquina, correndo, com medo de ser atropelado pelas vozes, risos, assovios, brincadeiras, sons alegres, pessoas amadas, pedaços de felicidade em cada canto. Não consigo decifrar o que é. Um tênue sofrimento, uma dor, uma lágrima perdida.. Uma sentimento dolorido e oculto me faz fugir daquela esquina perdida no tempo que não vi passar. . Parodiando Sergio Bitencourt na homenagem a seu pai, Jacó do Bandolim, naquela esquina, estão faltando eles e a saudade deles está doendo em mim.



Antonio Calixto, alegriense, advogado e professor universitário.
(antoniocalixto@assp.org.br)
Publicado no periódico o “Cuscuzeiro”-2.008

Um comentário:

  1. Amigo Calixto, parabéns pelo blog. Continue escrevendo nos embriagando de emoção e deixe fluir não só o lado político corretamente democrático mas também o literário que,nesses 45 anos de convivência posso testemunhar, é tão forte quanto.
    NAQUELA ESQUINA você esqueceu de mencionar o moleque de calça curta, cabelo vermelho, sentado na calçada discutindo política com seus pares adultos.
    Em tempo: o Volkswagem vermelho do Zeca fui eu que vendi.
    Um grande abraço
    Enio

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