sexta-feira, 9 de abril de 2010

GERAÇÃO DAS CRIANÇAS TRAÍDAS

O poema das crianças traídas – Lindolf Bell

Eu vim da geração das crianças traídas
Eu vim de um montão de coisas destroçadas
Eu tentei unir células e nervos mas o rebanho morreu.
Eu fui à tarefa num tempo de drama.
Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.

Eu fui às cidades destruídas para viver os soldados mortos.
Eu caminhei no caos com uma mensagem.
Eu fui lírico de granadas presas à respiração.
Eu visualizei as perspectivas de cada catacumba.
Eu não levei serragem aos corações dos ditadores.
Eu recolhi as lágrimas de todas as mães numa bacia de sombra.
Eu tive a função de porta-estandarte nas revoluções.
Eu amei uma menina virgem.

Eu arranquei das pocilgas um brado.
Eu amei os amigos de pés no chão.
Eu fui a criança sem ciranda.
Eu acreditei numa igualdade total.
Eu não fui canção mas grito de dor.
Eu tive por linguagem materna, roçar de bombas, baionetas.
Eu fechei-me numa redoma para abrir meu coração triste.
Eu fui a metamorfose de Deus.

Eu vasculhei nos lixos para redescobrir a pureza.
Eu desci ao centro da terra para colher o girassol que morava no eixo.
Eu descobri que são incontáveis os grãos do fundo do mar
mas tão raros os que sabem o caminho da pérola.
Eu tentei persistir para além e para aquém do contexto humano,
o que foi errado.

Eu procurei um avião liquidado para fazer a casa.
Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque enferrujado.
Eu construí uma flor de arame farpado para levar na solidão.
Eu desci um balde no poço para salvar o rosto do mundo.
Eu nasci conflito para ser amálgama.

II

Eu sou a geração das crianças traídas.
Eu tenho várias psicoses que não me invalidam.
Eu sou do automóvel a duzentos quilômetros por hora
com o vento a bater-me na cara
na disputa da última loucura que adolesceu.
Eu sou o anti-mundo à medida que se procura o não-existir.
Eu faço de tudo a fonte para alimentar a não-limitação.
Eu sei que não posso afastar o corpo que não transcende
mas sei que posso fazer dele a catapulta para sublimar-me.

Meu coração é um prisma.

Eu sou o que constrói porque é mais difícil.
Eu sou o que não é contra mas o que impõe.
Eu sou o que quando destrói, destrói com ternura
e quando arranca, arranca até a raiz
e põe a semente no lugar.

Eu sou o grande delta dos antros
Os amigos mais autênticos são as águas que me acorrem.

Eu sou o que está com você, solitário.
Quando evito a entrega, restrinjo-me.
Quando laboro a superfície é para exaurir-me.
Quando exploro o profundo é para encontrar-me.
Quando estribo braços e pernas na praça sobre o não alterável
É para andar a galope sobre a não-liberdade.

III

Sem bandeira que indique morte qualquer,
avanço das caliças.
Sem porto fixo à espera, nem lar de maternas mãos
ou rua de reencontro.
Ostento meus adeuses.
Sem credo a não ser à humanidade dos que me amam e desamam,
anuncio a catarse numa sintaxe de construção.

Eu escreverei para um universo de concessões.
Eu saberei que a morte não é esterco,
mas infinda capacidade de colher no chão menor adubado,
que poderei sorvê-la como à laranja que esqueceu de madurar,
que serei alimento para o verme primeiro da madrugada,
que a vida é a faca que se incorpora em forma de espasmo,
que tudo será diferente, que tudo será diferente, tão diferente…

Eu quero um plano de vida para conviver.
Eu ostentarei minha loucura erudita.
Eu manterei meu ódio a todos os cetros, cifras, tiranos e exércitos.
Eu manterei meu ódio à toda arrogante mediocridade dos covardes.
Eu manterei meu ódio à hecatombe de pseudo-amor entre os homens.
Eu manterei meu ódio aos fabricantes das neuroses de paz.
Eu direi coisas sem nexo em cada crepúsculo de lua nova.
Eu denunciarei todas as fraudes de nossa sobrevivência.

Eu estarei na vanguarda para conferir esplendores.
Eu me abastardarei da espécie humana.
Eu farei exceções a todos os que souberam amar.

OS CICLOS – 1964



Lindolf Bell, filho de Theodoro e Amália Bell, nasceu na cidade de Timbó em 2 de novembro de 1938. Foi de seus pais que herdou a clareza dos poemas, os quais mesmo sendo produzidos na urbanidade, conservaram elementos da vida agrária. Os pais do poeta eram lavradores, porém, com um grande sentimento e conhecimento de mundo, o que definitivamente ficou enraizado em sua vida e obras.

Ao ser líder do Movimento Catequese Poética, o qual permitiu a milhares de pessoas o acesso à poesia e à arte, Lindolf Bell foi reconhecido nacionalmente e internacionalmente. Era um homem que abrigava o mundo no coração, que amava os girassóis, que via tudo como missão, encarando a palavra como uma dádiva e fazendo dela um instrumento de comunhão e solidariedade.

Lindolf Bell é atualmente o maior, o mais constante e importante nome da poesia catarinense, assim levantou-se a bandeira “como uma palavra tribal” em prol de sua memória, transformando seu sonho em realidade, buscando cada vez mais fazer com que “o lugar do poema deve ser onde possa inquietar”.

Bell casou-se com Elke Hering (reconhecida artista plástica), com a qual teve 3 (três) filhos: Pedro, Rafaela e Eduardo Bell.

Após difundir seu movimento pelo Brasil e exterior, fixou moradia na cidade de Blumenau, onde, juntamente com a esposa Elke Hering e os amigos Péricles e Arminda Prade, criou a Galeria Açu-Açu (primeira do Estado de Santa Catarina). Além destas atividades, Bell também foi contador, professor, crítico de artes, conselheiro estadual da cultura do Estado de Santa Catarina e marchand (promotor de eventos relacionados à arte).

Foi um nome ligado à invenção lógica, à ousadia, à uma capacidade mágica. Seguindo seus impulsos rompeu as amarras que prendiam a poesia, tornando e exigindo o contato direto com o leitor. Bell também difundiu suas idéias através de painéis-poemas, corpoemas…

Se o ofício do poeta é redescobrir a palavra, como dizia o autor de As Vivências Elementares, nosso ofício é o de redescobrir o poeta, através de suas palavras, tais como aquelas presentes na Metafísica Cotidiana: procuro a palavra-palavra a palavra fóssil, a palavra antes da palavra”. Esse impulso rumo às origens nos torna mais sensíveis e profundos.

Bell amava a terra e tudo o que dela advinha. Mergulhando no drama da humanidade; a sua poesia mantinha-se vibrante. Tratava sempre da vida, da terra, da infância, do destino, da solidão, do efêmero, do transcedente, do sonho e da esperança.

Em uma entrevista do poeta à FCC (Fundação Cultural Catarinense), quando questinonado sobre algo de sua residência, o mesmo respondeu: “Todas as coisas que me rodeiam são raízes. A jabuticabeira que deve ter quase cem anos, a caramboleira, os baús, os móveis e todos os objetos antigos não são uma forma triste de memória mas uma afirmação de que, num crescimento espiritual, num crescimento humano não podemos jogar nada pela janela ou no lixo. Não podemos jogar fora as raízes – elas nos preservam e elas se preservam conosco, na memória ou dentro da terra, seja onde for, mas elas também nos projetam porque, à medida que elas se preservam na terra, elas crescem fazem a gente crescer, como uma árvore. O homem é uma árvore que abriga amores, lembranças, outros seres, uma árvore que dá sombra e luz, e é para isso que a gente nasceu, fundamentalmente. Isso eu aprendi, é claro convivendo com meus pais e também com os vizinhos, que tinham maneiras semelhantes de viver e conviver, maneiras simples mas definitivas”, ou seja, é isso que se pretende preservar e que busca-se vislumbrar na Casa do Poeta Lindolf Bell.

Ficamos entristecidos depois de sua partida, o que apenas completava o que sempre dizia: Quanto mais sozinhos menos inteiros. Só nos bastamos na proximidade, em bando. E o bando sem ele é muito pouco. Em 10 de dezembro de 1998 veio a falecer.

“Mas um poeta não morre; pois a vida dos poetas é eterna. Bell colocou um pouco dela em cada palavra que escreveu e, embora seu corpo tenha ido, sua vida continuará espalhada eternamente pelas páginas dos livros que abrigam sua obra, na magia de suas palavras e pelo legado cultural que nos deixou”. (fonte:http://www.lindolfbell.com.br/Biografia.php ).

Autor: gerd_klotz@ig.com.br - Categoria(s): Notícias
Tags: ComentáriosComentarEnviarPermalinkCompartilharCompartilhar no Yahoo!Compartilhar no TechnoratiCompartilhar no StumbleUponCompartilhar no redditCompartilhar no LinkedInCompartilhar no Google BookmarksCompartilhar no FacebookCompartilhar no DiggCompartilhar no BlogBlogsCompartilhar no del.icio.usCompartilhar no LinkkCompartilhar no TwitterCompartilhar no MySpace
 1 comentário para “Poema da madrugada”
José Carlos disse: 21/06/2009 às 23:03Boa noite!
Como sou fã ardoroso de “Geração das Crianças Traídas”, de Lindolf Bell, desde minha imemorial época de ginasiano, lá pelos ídos de 1970, — quando então havia uma coleção de poesias chamada “Charitas”, gravada em compactos simples (vinil) –, gostaria de saber se por um acaso vocês não teriam essa poesia aí gravada daquela coleção.
Bom, na espectativa de uma resposta,
Agradecimentos antecipados!

José Carlos
Niterói, 21/06/09.

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