terça-feira, 27 de julho de 2010

MINHA ALDEIA

Cresci no vilarejo, com nome de Santo. Meu pai, Ayub Calixto, viúvo precocemente de Mariana e Joana. Minha mãe também era Joana. Conhecida por D. Nagib. Cresci como filho único, e caçula de todos, que foram meus pais e heróis em meu mundo de criança. Meus irmãos Zeca, João, Bile, Pedro, são os primeiros. Abrão e Maria Inêz, da segunda mulher, e finalmente cheguei, desfrutando imensamente de um universo despoluído construído pelo pai, “o velho João Ayub”, como era conhecido. Uma lenda em vida. Nada de conselhos ou palmadas. Apenas, exemplos de honestidade e fraternidade e dignidade. Falava sem nada dizer. Rio, passarinhos, cavalos, vacas e bichos. Tinha o maior orgulho de atravessar a cidade “tocando gado”, sobre o lombo de uma égua magra e um arreio cheio de remendos como costumava andar. O meu sonho era ter um belo “arreamento” ou “cutiano”, que nunca se realizou. Quando você cresce e pode obter alguns objetivos, já não existe o sabor da infância. As cercas remendadas e o gado tratado apenas com cinzas e sal. Eram sadios e perfeitos. O rio é o Pinheirinho. Mangueiras e jaboticabeiras em todos os quintais. Uma fartura sem fim. Pertenciam a todos. A água encanada não havia chegado e às pessoas buscavam água na “mina”, ao lado do Rio. Havia uma pequena ponte com passagem para um veículo. Do outro lado da ponte, uma casa de alpendre de madeira, a oficina de madeira do Argeu, o pasto do Tuíca, além da venda do Zé Gordo. Isto durou infinitamente. A Doca, o Zé Júlio, o Beto, O João Tavares, Pedro Costa, Pedro Elias, criador de coelhos, faziam parte do povo do outro lado do Rio. À exceção da casa de alpendre de madeira, onde morou o tio Elias, a Bia e todos os Esper, tudo continua mais ou menos igual. O Antonio João, marido da D. Salma era proprietário de uma Leiteria. Com a égua velha do meu pai, levava o leite do dia, que meu pai, comerciante, agropecuarista e retireiro nas horas vagas, tirava de suas vacas na “Água Suja”, “Cateto” ou “Poção”. A cidade ainda não tinha calçamento e os animais eram atrelados nas argolas das calçadas. Ainda havia o Conselho, um terrenão onde se apreendia os animais. A casa antiga da Dona Salma, da Veva e do Jola continua intacta. Do outro lado do rio, morava o Pedro “Sinhana”, João Tavares, o Pedro Costa, a sapataria do Bérgamo. Os Genari. Pedro Elias, que criava coelhos. O chalé de madeira da família Esper. Os Queijeiro. E o Calixtinho. A chácara do Tonicão habitada pelo Luisão. Do lado de cá da ponte, na rua principal, O Benedito Barba e a com seus filhos Luis e Jair , na casa de tábuas de larga. A Tianinha, professora de todos. Ônibus para Altinópolis, o caminhão de leite do Zico, irmão do Zé Odair. Um pouco mais adiante o moinho de fubá do Manoel Alecrim e da D. Maria e uma porção de filhos e netos. Ao lado da máquina de arroz do Pedro, a praça, com campinho de futebol improvisado, onde já adolescente jogava com os filhos do Moacir. Jogava no SAE, mais “bravo” do que o Felipe Mello. A barbearia do Marinho Barbeiro, sucedido pelo Laurentino e Zé Pierre. Na rua principal, o Correio, onde trabalhava o João do Yeyé e seu cunhado o Neguinho do Brasiel, a sorveteria do Manife, com sorvetes e picolés, sabor de infância. A loja da Margarida.Aprendi com a Rita gostar de “bossa nova”. A biblioteca pública municipal, também Ponto de ônibus. Em frente, a venda do meu tio Zé Abrão, com filhos Carlinhos e Carminha. E lá na esquina, mais acima, o meu universo, que hoje busco e não encontro, a loja de João Meziara, a venda do João Aiub e a loja do Zeca, tio José Calixto, a Bile, D. Rosária e Dino.A comadre Abla, Pedro Marchetti, a barbearia do Flávio. Vinha a Praça da Bandeira, cercada por Luiz Cury, Benedito Naves, Antonio Evódio, João do Yeyé, Joaquim Mateus, Zé André e D. Lâmia, a Padaria do Maranhão. A sorveteria do Orestes de várias mãos. Na esquina , O tio José vendia pela frente e a tia Mariquinha doava aos seus pobres pelos fundos. Na esquinaum mundo que fervia. A única unanimidade era o Palmeiras, graças ao Zeca, que doava espelhinhos e gorrinhos a todas as crianças e tingiu de verde o Brasil. A casa do Pedro, prefeito eterno, permanente comitê eleitoral. Tudo funcionava todo dia, até ao domingos, mesmo fechados, as “vendas” atendiam pelos fundos. Não havia cara feia. Uma concorrência saudável. Bacalhau ainda era comida de pobre. Àqueles que vinham da roça, tomavam cerveja quente e sardinha com cebolas. Era um banquete. Bolinhas de vidro, espadas de bambu e figurinhas e doces. O Grupo Escolar “Conego Macário de Almeida”, com os inspetores Domingos Marchetti e D. Elídia, tinha gosto de aconhego. Professores como D. Maria Chocair, D. Tereza Marincek e outros que se sucederam fizeram parte da utopia das crianças, que sonhavam sem sonhar. Os cães policiais Buck e Jones, trazidos pelo Jorge Elias do Paraná que aumentaram a família do Antonio Elias, do Bagulé e de seu cavalo Mosquito, orelha murcha, que me deixou para sempre uma cicatriz. Na viagem do Paraná chegou o Roberto Atevaldo, uma beleza negra, que com dificuldades, construiu sua história e esforçado passou ser locutor oficial do serviço de auto-falante do Santo Antonio E.C. substituindo Milton Pereira Dias. Oferecia-se música da seguinte forma: “Esta música de Anísio Silva, é de alguém que oferece para alguém, como prova de muito amor”. A comunicação era assim. Festas e falecimentos eram noticiados com a mesma ênfase. Robertão até hoje faz um pouco de tudo: pintor, massagista, corredor da São Silvestre, treinador e goleiro titular do Santo Antonio Esporte Clube e presente nos momentos de dor de qualquer alegriense. A nossa turma admirava mais os velhos: Zé Ibrahim, com seu Karmanghia, Luis Geraldo, Cuca, o Ivo da Maria Abrão, apelidado de Panka, os boys de antigamente. Os circos chegavam, com Luisinho, Rubinho e Bagulé não perdíamos os espetáculos que eram diários e repetidos, sempre comendo os pés de moleque da Lâmia, que seriam para “vender”. Ficamos conhecendo a músicas caipiras autênticas: Vieira e Vieirinha, Sulino e Marrueiro, Caçula e Marinheiro, Silveira e Barrinha, Tião Carreiro e Pardinho, Tonico e Tinoco e todas duplas “afamadas”, sem contar a mulher famosa (Olga Zumbano) que lutou com Marcão no tablado de um circo . Sabíamos de cor os trechos dos dramas circenses repetidos em todas as sessões e sempre entravamos de graça, pela porta ou debaixo das lonas. A molecada nadava desnuda no Rio. Os lugares são os mesmos: “prainha”, “hangá”, “Bebedouro”. Festa permanente de meninos. Os moleques do meu tempo: Juarez, Toninho Arantes, os filhos do seu Micas, o Rubinho, o Luisinho, o Bagulé, o Luis Barba, o Bagulé, Zé Gentil, Besouro, Guido, Bagudela, O Zé e Toninho Chocair, João Margarido, Tadeuzão, João Eurico, o ajuizado Nesinho do Cartório, Zé Marchetti, Brás do Zé Quita, e mais um punhado de amigos. O cinema do Pete, irmão do lateral Pinka, a grande diversão. A nossa mior viagem foi a vizinha Itamogi, para assistir “Marcelino Pão e Vinho”, de ônibus fretado. Acredito que “a vida começa todas os dias”. Não há, entretanto, como esquecer uma história simples: meninos de pés no chão, desconhecendo que tudo que nos rodeava tinha o nome de felicidade. Um tempo que demorou a passar. Foi eterno, incorporado às nossas almas de crianças, vivendo de pequenas “artes” . “Arteiro,” era o moleque que fazia arte. Jamais imaginava o que tudo que era vivido tinha o gosto de uma palavra encantada e tão buscada. Era a travessia para viver inconformado em um País tão injusto e desigual. É impossível rasgar e retirar do coração e memória um tempo de folia, gibis, mato, campo de futebol, o rio, pássaros, mocinhos, cavalos, bolas, esconderijos, quermesses, procissões, parques, circos e festas de Santos, Congadas e Reis. É a minha Aldeia.
Antonio Calixto ( Presidente da Câmara em Santo da Alegria aos 21 anos. Orador da primeira turma antigo ginasial da atual EE. “Cônego Macário de Almeida”. Foi deputado estadual constituinte, vereador e Vice-Prefeito de Ribeirão Preto (antoniocalixto@aasp.org.br) É advogado e professor.


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