segunda-feira, 7 de junho de 2010

A VENDA

Uns doces estranhos na pequena vitrine, caixa de bacalhau e caixa de manjuba, ambas abertas, vários litros de cachaça, uma lata velha marrom com coco ralado, a caixa de madeira no meio de venda era onde se guardava as vendas a vista, coisa rara. um borrador e logo acima os livros de verdade,densos e de capa preta. Um velho móvel com tampas, para venda de produtos a granel. Os dias eram iguais. Os assuntos não variavam. O Palmeiras era o centro. A política local. Depois de cada derrota no pleito eleitoral dizia com otimismo. Só faltam mil dias para as próximas eleições. Amava política, mas não tinha adversário. Ao seu lado uma mulher t aroeira, coberta por uma ética e bondade extrema. As compras eram registradas no borrador. Depois lançadas no livrão. O pagamento anual, sempre na colheita. Não havia inflação. Em dois cômodos, chamados de reservados, sacos fechados e abertos de feijão e arroz, juntos bolas. O balanço anual como dizia o proprietário com sabedoria: “ to comendo e bebendo, tá bom demais, o que sobrar é lucro”. Os mais humildes encontravam amparo e carinho. Dinheiro não era problema. Todos tinham crédito: arroz, farinha, botinas e até pinga. A gente era feliz tirando lascas do bacalhau e comendo manjubas. Tudo fiado, bem a gosto do freguês . O dinheiro que entrava para a pequena gavetinha era miúdo, mas fazia uma grande fartura. A fartura do pão dividido. Os pobres eram tratados com dignidade e iluminados pela bondade serena daquele homem. Cada viajante não se preocupava em vender. Tornavam-se amigos. Estimulavam uma divertida concorrência entre os comerciantes para ver quem comprava mais. Ali a parada, o repouso, o abrigo permanente. O dono do armazém por algum tempo, dirigiu o SAEC, time de uniforme verde, tudo verde, como tingida de verde foi a cidade pelos dois irmãos, um de frente ao outro, num duelo de alegria permanente, de gritos e solidariedade. Espelhos, gorrinhos, meias do “Parmera”. Palmerenses, em sua maioria descendentes de sírios. Estranhamente a colônia italiana era torcedora do São Paulo. Alguns corintianos tradicionais. Santistas da geração Pelé, integravam aquele mundo belo e verde. Nas tardes, os animais amarrados nas guias das calçadas, cervejas quentes, sardinha, óleo e cebola. Um banquete assumido com simplicidade e animação por animados cavaleiros. No centro daquela venda, um ser humano com cara de coração. A palavra não jamais existiu em seu vocabulário. Ninguém saía de seu estabelecimento descontente. Distribuição permanente de tudo. A solidariedade em grandes proporções, inesgotável sempre. Seu primeiro veículo foi uma bicicleta, depois a velha Brasília. Vivia com simplicidade. Encarnava a simplicidade. Curtia a alegria e o luxo das relações humanas. Todos eram irmãos, mais que amigos. Amava e era amado. Foi embora de repente, sem sofrimento. A partida de um justo. No dia que ele se foi – uma procissão de órfãos, com suas lembranças nos pés, na cintura e na cabeça. Cintos, botinas e chapéus cintilavam como lembrança do amigo que partiu de repente. Sem sofrimento, como merecem os bons. O mundo jamais foi o mesmo. Sem querer, deixei de sonhar. Perdi meu ombro de amigo e o irmão quase pai. A estrada ficou vazia, estreita e árida.

Antonio Calixto – Alegriense. Advogado e Professor. Foi deputado estadual constituinte.
(Dedico os rabiscos acima a João Aiub Calixto, o João.)

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