terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O EGITO

O Egito e as mentiras ocidentais



Depois da Tunísia, o Egito entra na fila da deposição dos ditadores que mantém governos corruptos e violentos no Oriente Médio e adjacências. No Iêmen do Sul o ditador de três décadas anunciou que não disputará as próximas eleições. No ocidente a grande imprensa poupa Mubarak e exalta a violência dos conflitos. Há muito mais em jogo.Ricardo Alvarez
Após os ataques às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, o governo Bush implantou uma política externa tão violenta quanto estúpida: o mundo agora se dividia entre o povo do bem e o do mal. Desnecessário explicar que o bem se centrava nos EUA e sua visão de mundo, e o mal nos que nela não se encaixavam. Compunham este segundo grupo, de maneira geral, islâmicos e árabes, considerados terroristas por vocação e seres de segunda categoria. Com este discurso, pretendeu-se tornar absolutamente aceitável bombardear casas, matar crianças, destruir cidades em nome da nova política de “combate ao terror”.
Primeiro foi o Afeganistão, com a ocupação pelos EUA ao final de 2001, que recebeu tantas bombas sobre a cabeça quanto aplausos das elites ocidentais. Mesmo que vidas fossem perdidas nada deveria impedir a campanha de “combate ao terror”. O bem começava a se sobrepor sobre o mal, pelos menos na visão dos líderes do G20.
Depois foi a vez do Iraque, ocupado em 2003 a partir das mentiras já desvendadas de que o país acumulava armas químicas e era uma ameaça latente ao povo norte-americano. Outro membro efetivo do clube do mal havia então sido atacado.
Para os de boa memória, relembro que Saddam Hussein recebeu adjetivos nada dignos num processo permanente de desconstrução de imagem, antevendo a sua derrubada e captura, com o objetivo de justificar as atrocidades contra o povo iraquiano e minimizar o desrespeito aos tratados internacionais de soberania das nações. Não nos esqueçamos que o inimigo momentâneo, tinha sido um grande aliado dos EUA e mundo ocidental, nos anos 1980 durante a guerra Irã x Iraque. Não se trata de defender Saddam, mas de mostrar como dois déspotas recebem tratamentos diferenciados a depender de suas relações com o ocidente.
Uma leitura atenta das notícias sobre as manifestações no Egito neste momento, nos leva à impressão de que Hosni Mubarak, o epicentro da crise, não é um Saddam. Pouco se publica sobre as atrocidades de seu governo contra os movimentos de oposição, as torturas, mortes e prisões arbitrárias. Como um líder tão impopular pode permanecer tanto tempo no poder senão lançando mão de estratégias desta ordem?
As mentiras ocidentais escondem que Mubarak é um aliado de primeira linha dos EUA, que recebe mais de bilhão anual de ajuda em troca de sua política de mediação entre Israel e a vizinhança. Além disso, os tanques de guerra das forças armadas do governo Mubarak que aparecem nas imagens, são norte-americanos, expressando os acordos militares de fornecimento e compra de armas. Contudo, esta aproximação política não foi suficiente para proteger Mubarak da ira popular. A realidade se impôs.
A crise econômica global, estacionada nos países ricos, rebateu forte nas economias mais frágeis e dependentes do flanco do sistema, como o Egito. A falta de diversificação de sua produção industrial e excessiva dependência da exportação de matérias primas tornou o país presa fácil da onda recessiva.
Além disso, o turismo, muito dependente da Europa e dos EUA, viu minguar seus fluxos em função deste quadro econômico mundial, atividade esta que representa aproximadamente 11% do PIB e sustenta cerca de três milhões de famílias. Some-se a isto a alta nos preços dos alimentos, o desemprego crescente que afeta as populações mais jovens, a contínua repressão política a falta de liberdade na organização sindical e partidária, dentre outros fatores, como por exemplo, as mobilizações sociais da vizinha Tunísia.
Não interessa aos EUA e à União Européia a deposição de Mubarak, por isto a imprensa internacional tem repetido ‘ad nauseum’ que é preciso “cautela com relação aos próximos passos”, “transição pacífica e ordeira”, dentre outras. Mas quando a massa vai para a rua, com vontade e consciência, nada a detém. Os ventos da Tunísia lufaram as mentes dos egípcios criando uma vontade coletiva de mudança. Quem sabe outros ditadores, freqüentemente acariciados pelos líderes ocidentais, não sofram os efeitos das mudanças que se abatem sobre o norte da África? O Iêmen do Sul também já sentiu o frescor que exala das terras africanas.
Fica no ar a questão da ocupação do poder, caso Mubarak não resista às pressões. Evidentemente os EUA já trabalham com a hipótese de alçar algum moderado para substituí-lo, como o Nobel da Paz El Baradei, mas este carece totalmente de apoio popular, não é sequer uma liderança reconhecida no país e nem tampouco tem ao seu redor um partido político ou segmento social que o sustente, de qualquer forma nada de autonomia e independência. Estas seriam somente garantidas com uma mobilização contínua que complete o serviço de derrubada das velhas estruturas, das quais as grandes potências são signatárias.
Por fim, além da não “saddanização” de Mubarak, a grande imprensa ainda se utiliza de outros artifícios voltados para a diminuição do valor e a importância de um movimento social legítimo, justo e necessário.
Destaca a presença do grupo Irmandade Muçulmana que atua no Egito em oposição ao governo, gerando o receio da ascensão do radicalismo, mas é importante lembrar que o grupo lançou documento inicialmente não apoiando a mobilização. Acabou atropelado por ela.
Noticiam-se com ênfase as mortes que lamentavelmente ocorreram até então, além de tiros e pedras trocados em praça pública, mas pouco se fala de que os ataques fazem parte da ação do governo através de sabotadores e milícias que agem no meio do público, os battagi, cuja única função é semear confusões.
E os saques ao rico patrimônio histórico egípcio, ocorridos com a complacência da guarda pública que fez vistas grossas aos invasores também alinhados ao governo, fato este que intenciona a criação de antipatia mundial aos manifestantes.
Mas até agora o que se vê é a força de um povo que decidiu dar um basta geral a décadas de tirania, tudo regado a muita espontaneidade e agitação organizada pelas redes sociais (twitter e facebook, principalmente). Fundamental, nesta conjuntura política, é não apenas obter sucesso na derrubada do regime, mas também manter acesa a mobilização da sociedade na formação do novo gabinete e atuar diretamente na sua gestão, pois se ele for realmente popular não terá vida fácil diante dos países ricos.
Ricardo Alvarez

Geógrafo, é professor e editor do site Controvérsia

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