terça-feira, 30 de novembro de 2010

O PÓS MODERNO

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O PÓS MODERNO
Texto de Francisco Oliveira*

Neste artigo de opinião publicado na Folha de São Paulo, Chico Oliveira (o sociólogo que saíu do PT em 2003 para fundar o PSOL) lembra a evolução das condições de vida dos trabalhadores da cana do açúcar para dizer que Lula é, agora, a vanguarda do atraso.




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LUIZ INÁCIO Lula da Silva, o atual presidente, nunca disfarçou seu desprezo pelos intelectuais, sentimento ou perspectiva compartilhada, aliás, por não poucos dos seus camaradas. Houve até um ministro importante do primeiro mandato que, ao anunciar a criação de um núcleo de estudos estratégicos no governo, avisou imediatamente que nele não teriam assento intelectuais que discutem eternamente o "sexo dos anjos", o que deu para desconfiar que ele não entendia nada de sexo ou de anjos -ou dos dois. A ironia é que Lula entregou agora o Ipea e o tal núcleo de estudos exatamente a um intelectual, tão intelectual que fala português com sotaque norte-americano.


Intelectual, diga-se logo, não é garantia de coisa alguma, pois o predecessor de Lula era um intelectual consagrado, que aliás se pavoneava com certa desfaçatez, proporcional ao desprezo de Lula. Que o PT tenha incensado certos intelectuais não faz muita diferença, pois essa é uma tradição da esquerda, a instrumentalização dos intelectuais ou de seus prestígios.


Por isso, não se lamenta muito o desprezo do presidente. Mas ele agora deu um salto à frente, de enormes proporções, e se tornou o mais eminente dos pós-modernos. Ainda que rejeitem a noção de vanguarda, é certo que Luiz Inácio é, agora, a vanguarda do atraso.


Fazendo tabula rasa da história dos trabalhadores sob o capitalismo, Lula se entregou a perigosos exercícios intelectuais: designou os usineiros de açúcar do Brasil como heróis, os mais importantes do Brasil moderno, vale dizer, do Brasil lulista. Logo ele, pernambucano, desconhecer a história dos trabalhadores da cana-de-açúcar.


Jogou na lata de lixo as vidas ceifadas e de qualquer modo amesquinhadas por uma das formas de exploração do trabalho mais brutais. Não, segundo o pós-modernismo do presidente, eles, os trabalhadores, não existiram, suas vidas não contaram, porque os usineiros sempre foram magnânimos e um viés preconceituoso da esquerda prejudicou o reconhecimento do papel e do lugar dessa primorosa classe social na história brasileira.


Francisco Alves é um pesquisador e professor da Universidade Federal de São Carlos que, com José Roberto Novaes, este da federal do Rio de Janeiro, está publicando em livro os resultados de anos de investigação sobre o trabalho dos cortadores de cana na região eldorada do açúcar em São Paulo. Em recente seminário na Faculdade de Saúde Pública da USP, foi difícil conter a indignação de Chico Alves, pois os jornais noticiavam mais uma morte por exaustão de um trabalhador da cana. Quase ao mesmo tempo, a Folha atualizava a sinistra estatística: já são 19 trabalhadores que morrem por exaustão desde 2004.


A professora Maria Aparecida Moraes, que também comparece com excelente artigo na coletânea, esclarecia em entrevista o que provocava as mortes por exaustão, mas a encerrava com uma nota final esperançosa que, para os leitores, era completamente estapafúrdia diante do que ela mesma comentara. Aos fatos, finalmente: a produtividade dos trabalhadores tem crescido de maneira exponencial. No período de dez anos estudado por Chico Alves, ela havia passado de seis para 12 toneladas diárias. Eles perdem cerca de dez litros de água por dia, percorrem distâncias -no campo de trabalho, nos metros que lhes são destinados para corte- de dez quilômetros diários, dão 66 mil foiçadas (com o podão, um facão especial) por dia para lograr as 12 toneladas diárias, trabalham no mínimo 12 horas por dia, numa jornada que tem, pelo menos, seis horas de intensa exposição ao sol.

São encontrados no fim do dia nos postos de saúde tomando soro na veia para recuperar um pouco dos sais que perdem. Morrem por esgotamento: câimbras que podem provocar paradas cardíacas. Têm hoje vida média inferior à dos escravos coloniais.


Em reportagem da Folha, um deles relatou que quase foi picado por uma cobra, que exige que andem com perneiras de plástico e ferro para evitar os presentes da deusa do Paraíso e o repique do podão.


A ironia da história é que a mudança do critério de toneladas para metros foi uma vitória da célebre greve de Leme em 1986, aquela em que deputados do PT, entre eles José Genoino, foram acusados pelas autoridades, com apoio dos heróis usineiros, de disparar um tiro que matou uma trabalhadora rural. Mas essa vitória de Pirro exige que os trabalhadores saibam converter metros em toneladas para não serem logrados, e a história diária é a de um roubo descarado. Marx disse certa vez que o capitalismo não é roubo, é exploração.


É necessário ressuscitar a princesa Isabel e Marx: a primeira para realizar a nova abolição, e o segundo, para reformular seus conceitos, ainda generosos, de mais-valia e exploração. Ave, Lula! Os usineiros te saúdam, e o Brasil, transformado num imenso canavial, curva-se à tua sapiência!

FRANCISCO DE OLIVEIRA, 73, é professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

LUTA E RESISTÊNCIA

Trabalho e meio ambiente: o avesso da moda do agronegócio
Maria Aparecida de Moraes Silva*
Rodrigo Constante Martins**
Resumo: O objetivo deste texto é contribuir para as reflexões referentes às
formas de reprodução do chamado agronegócio sucroalcooleiro, tomando
como exemplo o interior de São Paulo. Para tanto, buscaremos desenvolver
uma análise concreta das repercussões sociais e ambientais do referido modelo.
Palavras-chave: Meio ambiente; Agronegócio; Trabalhadores rurais.
Introdução
A Região de Ribeirão Preto, uma das mais ricas do estado de S.
Paulo, engloba 25 cidades, possui 384.758 hectares plantados em cana e cerca
de 40 usinas que produzem 30% do álcool e do açúcar do país. (Folha de S.
Paulo, 15 de setembro de 2004, Caderno Dinheiro, B12). Em 1990, havia na
região 26 usinas e 16 destilarias; 60.000 trabalhadores eram empregados no
corte da cana; a produção de cana-de-acúcar era de 55,7 milhões de toneladas
e a de álcool 3,64 bilhões de litros. Em 2002, havia 41 usinas, 30.000 cortadores
de cana e a produção de cana se elevou para 80 milhões de toneladas e a de
álcool para 3, 7 bilhões de litros. (Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão, 22 de julho
de 2002, p. C1).
A partir da década de 1990, foi sendo gestada a ideologia do
agronegócio, no Brasil, que consiste em demonstrar que a aplicabilidade da
ciência na agricultura, por meio de tecnologias cada vez mais sofisticadas,
por grandes empresas nacionais e internacionais, é o modelo de progresso
associado ao desenvolvimento econômico. Esta demonstração ganha força
a partir dos dados quantitativos apresentados. Os números acerca do aumento
da produção e da produtividade de grãos, tais como soja, café, algodão,
cana-de-açúcar, bem como os derivados, álcool, suco de laranja, além de
outros produtos, são cada vez mais crescentes e contribuem para dinamizar
* Professora livre-docente da UNESP, colaboradora do PPG/Geografia/UNESP/PP.
Autora dos livros, Errantes do fim do século (1999) e A luta pela terra: experiência e memória
(2004), publicados pela EDUNESP.
** Doutor em meio ambiente (área sociologia ambiental). Pós-doutorado em Sociologia pela
École de Hautes Études em Sciences Sociales, Paris. Professor credencidao do PPG/Ciências
Sociais/UFSCAR; Bolsita de Pós-doutorado da FAPESP.
as indústrias que fornecem equipamentos, máquinas e insumos empregados
pelas empresas agrícolas, espalhadas por todas as regiões do país. Assim, por
exemplo, notícias veiculadas pelos media acerca dos milhões de toneladas de
soja, de açúcar, dos bilhões de litros de álcool1 são o certificado do sucesso
deste modelo, algo verificado nas grandes feiras agrícolas – Agrishows –
realizadas em várias cidades do país, onde são feitos grandes negócios, cujas
cifras atingem, como na última feira em Ribeirão Preto, mais de um bilhão
de reais! Outro fator que contribui para este sucesso do agronegócio é o
desenvolvimento de pesquisas científicas em diversas áreas do conhecimento,
realizadas em várias universidades do país e também em empresas estatais
como a EMBRAPA (Revista Pesquisa, n. 122).
Todavia, os altos índices de modernização são acompanhados
também de desemprego e graves impactos ambientais. Segundo dados
fornecidos pelo NERA (Núcleo de Estudos e Projetos de reforma Agrária),
da UNESP, CPT (Comissão Pastoral da Terra), e MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra), publicados pela Folha de S. Paulo (12 de
setembro de 2004, p. B 8), o desemprego no campo gerado pela mecanização
assim se apresenta: na cultura do algodão, são abolidos 60 empregos para
cada vaga aberta pela mecanização; nas culturas do feijão e da cana, este
número é de 400. Isto significa que a mecanização destas culturas caminha
lado a lado com o fechamento das oportunidades de emprego no campo.
Considerando seis importantes cidades da região de Ribeirão Preto –
Araraquara, São Carlos, Franca, Barretos, Sertãozinho e Ribeirão Preto, em
2002, havia 6624 vagas para o setor da agropecuária; em 2003, este número
caiu para 3626, o que corresponde a uma queda de mais de mil empregos
suprimidos naquele setor. (Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 2004, Folha Ribeirão,
p. C3).
Do ponto de vista ambiental, o agronegócio tem representado a
importação para a região do chamado modelo euro-americano de
modernização da agricultura. Despontando como trajetória tecnológica
hegemônica no bojo da Revolução Verde, o modelo euro-americano
caracteriza-se como um sistema de produção baseado na utilização intensiva
de fertilizantes químicos combinados com sementes selecionadas de alta
1 Segundo estimativas da ÚNICA, na safra de 2006/07 da região Centro-Sul do país serão
moídas 375 milhões de toneladas de cana, o que representa um crescimento de mais de 10%
em relação ao período anterior; a produção de açúcar será de 25, 50 milhões de toneladas e
a produção de álcool superará os 15 bilhões de litros (Jornal Primeira Página, São Carlos, 11
de junho de 2006, p. B3).
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capacidade de resposta a esse tipo de fertilização, além do uso de processos
mecânicos de reestruturação e condicionamento de solos degradados pela
monocultura e no emprego sistemático de controle químico de pragas. Tratase,
do ponto de vista ecológico, da adequação de um pacote tecnológico
desenvolvido em países de clima temperado junto aos solos tropicais. Tal
sistema de produção tornou viável a difusão em larga escala da prática da
monocultura em várias regiões do país, e particularmente na região de Ribeirão
Preto.
No que tange ao aspecto político, o agronegócio tem sido o símbolo
do desenvolvimento econômico do país, por meio do saldo positivo do
comércio exterior, graças ao aumento das exportações, sobretudo de produtos
agrícolas, que vêm garantindo, sobretudo nos últimos anos, o pagamento
dos juros da dívida externa e permitindo que as taxas do superávit primário
sejam aumentadas pelo atual governo. Vale a pena ainda indicar as grandes
vitórias logradas pelo Ministério das Relações Exteriores em relação ao
comércio de algodão para os Estados Unidos e de açúcar para a União
Européia.
Diante deste panorama, o objetivo neste texto é contribuir para as
reflexões referentes às formas de reprodução deste modelo de agricultura.
Para tanto, buscaremos desenvolver uma análise concreta das repercussões sociais
e ambientais do referido modelo. Esta análise visa justamente superar a
possibilidade de uma interpretação abstrata do fenômeno do agronegócio,
resgatando as relações significativas que dão sentido concreto (como unidade
do diverso) às dimensões de exploração do trabalho social e dos recursos
naturais no âmbito do processo de produção de valor. Assim, para construir
o concreto pensado nos termos propostos por Marx (1987), interpretaremos
inicialmente as formas mais gerais dos processos de degradação ambiental e
precarização das relações de trabalho neste modelo de agricultura. Para tanto,
retomaremos dados do contexto nacional e, com maior atenção, do cenário
paulista. Posteriormente, aprofundaremos a discussão sobre os elementos
visíveis e invisíveis que caracterizam a complexidade do trabalho social nesta
agricultura, a partir da realidade ora existente na região de Ribeirão Preto.
Pretende-se neste esforço demonstrar como estas dimensões – a social e a
ambiental – são indissociáveis do ponto de vista das análises dos processos
de acumulação.
Produção de valor excedente e degradação ambiental
Como é sabido, ao longo do século XX, o constante avanço do
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capital industrial sobre a agricultura promoveu profundas transformações
na base técnica da atividade e nas formas de emprego do trabalho social.
Segundo Goodman, Sorj e Wilkinson (1990), ao confrontar o objetivo da
acumulação com os limites naturais da produção agrícola, o capital industrial
teria dirigido suas ações para a maximização do controle dos processos
naturais, de maneira que pudesse assegurar novos espaços de valorização e
reprodução de suas relações. Assim, a noção de apropriacionismo proposta
pelos autores representaria um movimento de apropriação industrial de frações
do processo de produção agrícola superando as restrições ambientais – sendo
uma de suas principais expressões a mecanização dos instrumentos de trabalho
necessários ao preparo do solo. Paralelo ao apropriacionismo, haveria também
um processo de substitucionismo que evidenciaria um momento onde o produto
agrícola passaria cada vez mais a ser substituído por produtos industriais –
evidência que poderia ser notada, segundo os autores, a partir do
desenvolvimento recente da indústria alimentícia.
Do ponto de vista histórico, a dinâmica do apropriacionismo industrial
atrelou-se principalmente à difusão mundial, a partir da década de 60, do
modelo euro-americano de modernização agrícola. Conforme define
Romeiro (1998, p. 69),
[...] por modelo euro-americano de modernização agrícola,
entende-se um sistema de produção que tornou viável a difusão
em larga escala da prática da monocultura. Trata-se de um sistema
de produção baseado na utilização intensiva de fertilizantes
químicos combinados com sementes selecionadas de alta
capacidade de resposta a esse tipo de fertilização, no uso de
processos mecânicos de reestruturação e condicionamento de
solos degradados pela monocultura e no emprego sistemático
de controle químico de pragas.
Despontando como trajetória tecnológica hegemônica no bojo da
chamada Revolução Verde, o modelo euro-americano de modernização
agrícola caracterizou-se fundamentalmente pela prática de uma agricultura
altamente especulativa, voltada para o cultivo contínuo de produtos com
maiores níveis de rentabilidade. Tal característica foi fundamental para
consolidar a monocultura – em detrimento dos sistemas de rotação – como
elemento de destaque nas estruturas agrárias, não apenas do Brasil, mas de
todos os países tropicais influenciados pelo referido modelo (GOODMAN;
REDCLIFT, 1991). Além disso, a adoção dos agroquímicos como resposta
tecnológica ao esgotamento do solo e à infestação de pragas geradas pela
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própria monocultura resultou, sobretudo nestes países, em índices ainda mais
elevados de perdas de fertilidade e estabilidade física do próprio solo.
No caso brasileiro, os riscos ecológicos próprios dos componentes
do moderno pacote tecnológico, somado ao descontrole do receituário
agronômico da maioria das propriedades agrícolas, provocaram – e
continuam a provocar – danos ecossistêmicos irreversíveis em algumas regiões
do país. O uso intensivo de fertilizantes, por exemplo, é um dos fatores
fortemente associados à eutrofização dos rios e lagos, à acidificação dos
solos e à contaminação de aqüíferos. A tabela 1, abaixo, nos mostra que, no
Brasil, em 1992 foram comercializados 69,44 kg/ha destes compostos para
fins agrícolas; em 2000, este montante chegou a 128,83 kg/ha, o que equivale
a um crescimento médio de 85,5% no volume de fertilizantes utilizados por
hectare plantado. Estes números ganham ainda maior expressão se
observarmos que o crescimento de área plantada no país neste mesmo
período girou em torno de 23% (IBGE, 2002)2. Já no caso dos agrotóxicos
– componente altamente danoso tanto ao ambiente natural quanto à saúde
humana –, a quantidade comercializada no país passou de 2,27kg/ha em
1997 para 2,76 kg/ha em 2000, correspondendo a uma elevação de 21,6%
na quantidade aplicada por hectare.
TABELA 1: Quantidades Comercializadas de Fertilizantes e Agrotóxicos
por Hectare Plantado: Brasil – 1997-2000
2 Este aumento desproporcional do uso de fertilizantes em relação ao crescimento da área
plantada tem sido verificado em toda a América Latina e Caribe. Dados da Cepal (Comisión
Económica para América Latina y el Caribe) mostram que nesta região, entre os anos de 1990
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ANO
QUANTIDADE
COMERCIALIZADA DE
FERTILIZANTES (kg/ha)
QUANTIDADE
COMERCIALIZADA DE
AGROTÓXICOS (kg/ha)
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
69,44
85,40
90,74
84,21
105,27
109,46
122,63
109,82
128,83
—————
2,27
2,70
2,58
2,76
Fonte: IBGE (2002).
No estado de São Paulo, as perdas anuais de solos em algumas áreas
de lavouras tradicionais – como o feijão, o milho e a cana-de-açúcar – por
manejo inadequado do solo chegaram, no final da década de 80, ao patamar
dos 60 mil hectares (LAMBERT, 1990). Em 1995, Bastos Filho alertava que
cerca de 15 milhões de hectares, ou 80% da área cultivada no estado de São
Paulo, estariam sofrendo processos erosivos além dos limites de tolerância3.
Segundo o autor, um dos fatores determinantes para a extensão destes
processos seria exatamente a ação antrópica, por via da remoção da vegetação
natural, pela movimentação sobre o solo com maquinário pesado e pela
aplicação excessiva de fertilizantes e corretivos agrícolas.
Estima-se que a erosão no estado carreia para os corpos d’água
superficiais cerca de 130 milhões de toneladas de solo por ano, provocando
o assoreamento de rios, de várzeas e de reservatórios, além também de
desencadear processos de eutrofização destas águas (COSTA; MATOS, 1997).
Além da erosão, o mau emprego das técnicas de irrigação também tem
provocado a contaminação dos recursos hídricos do estado, através do
carreamento dos resíduos de agroquímicos para as águas. A própria aplicação
destes agroquímicos sobre o solo também tem gerado efeitos danosos tanto
ao meio ambiente (como à microfauna terrestre) quanto à saúde dos
trabalhadores rurais. Segundo o Instituto de Economia Agrícola de São Paulo,
57% dos aplicadores paulistas não recebem qualquer tipo de orientação,
estando assim distantes de quaisquer normas e critérios de segurança (PNUD,
1999).
No caso brasileiro, o amparo estatal ao movimento de capitalização
do setor facilitou sobremaneira a adoção destas novas tecnologias. A partir
da década de 70, a adoção em larga escala das práticas tecnológicas do modelo
euro-americano propiciou, de fato, a elevação dos níveis de produtividade
em quase todas as culturas lavroeiras do país. Neste período, a política agrícola
nacional orientou-se para o setor externo estimulada por uma política cambial
agressiva, levando com isso grandes produtores a transferir recursos alocados
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e 1998, a área agrícola cresceu 6,3%, enquanto o consumo total de fertilizantes cresceu
42,2% (CEPAL, 2002). Ademais, a Cepal destaca ainda que o que poderia significar a
disseminação de técnicas modernas de plantio guarda especificidades perversas na América
Latina, posto que mesmo a expansão da fronteira agrícola na região segue historicamente
atrelada às tendências de especialização agrícola (tendo em vista os mercados externos) e o
monocultivo.
3 Este limite de tolerância é tecnicamente definido com base na quantidade de solo que podese
perder por via de processos erosivos sem que tal perda altere sua capacidade produtiva ao
longo do tempo.
na produção doméstica para o investimento em produtos exportáveis
(SAYAD, 1982). Muito do estímulo governamental encontrou reverberação
nos produtores paulistas, que passaram a dedicar-se às culturas mais
“protegidas” pelo governo – como foi o caso da monocultura canavieira,
fortemente amparada pelo Pró-álcool.
Parte do dinamismo do processo modernizador da agricultura paulista
deveu-se, ainda, às políticas de subsídios à mecanização e ao incremento do
uso de agroquímicos. A política creditícia vigente exigia a adoção do novo
pacote tecnológico – qual seja, o do modelo euro-americano de modernização –
ao mesmo tempo em que vinha priorizar os projetos de grande escala,
cumprindo um papel de indutora de transformações técnicas e fundiárias.
Sayad (1982) demonstrou que, de meados da década de 70 até o início dos
anos 80, para a concessão do crédito rural, o governo federal aplicava como
critério de distinção dos produtores a capacidade de pagamento dos
financiamentos; ou seja, quem oferecesse garantias reais mais elevadas, captava
a maior parte dos recursos. Isso, obviamente, contribuiu de maneira decisiva
para o comprometimento das condições de reprodução social dos pequenos
produtores agrícolas; muitos, no bojo deste processo, acabaram abandonando
a condição de lavradores autônomos, desfazendo-se de suas propriedades e
se transformaram em proletários rurais.
No estado de São Paulo este movimento consolidou, na década de
80, novas formas de organização e absorção da força de trabalho. A
mecanização de frações do processo produtivo, por exemplo, ocasionou a
maior captação de força de trabalho temporária em detrimento da
manutenção dos trabalhadores residentes já contratados. Ao serem excluídos
do processo produtivo, estes trabalhadores, juntamente com os trabalhadores
migrantes provenientes das regiões norte e nordeste do país, formaram um
excedente de força de trabalho que vem servindo de maneira funcional ao
processo de acumulação nas áreas rurais.
Desta feita, é mister considerar que o contexto de uso intensivo dos
recursos naturais pela moderna agricultura paulista possui várias imbricações
com a dinâmica das relações de trabalho no campo. Partindo deste
pressuposto, avançaremos a análise sobre este modelo de agricultura a partir
da dinâmica do trabalho temporário em um dos principais complexos
agroindustriais do país – a saber, o sucroalcoleiro – na região onde seu capital
encontra-se mais fortemente territorializado – a região de Ribeirão Preto.
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Produção de valor excedente e degradação do trabalho
Segundo estimativas da Pastoral do Migrante, mais de 200 mil
trabalhadores no período da safra da cana, laranja e café no estado de São
Paulo, são migrantes. Pelo fato de serem temporários, muitas vezes, não são
computados pelas estatísticas dos órgãos oficiais. Este fato denota a
invisibilidade desta mão-de-obra, agravada pelas relações de trabalho baseadas
na terceirização. Nos últimos anos, tem havido muitas denúncias de trabalho
em condições análogas à de escravo na região de Ribeirão Preto. Geralmente,
os registros de trabalho escravo são feitos em lugares distantes da região
sudeste, nas chamadas áreas de fronteira agrícola, portanto, a variável
geográfica é, com muita freqüência, vista como um dos determinantes da
explicação das relações escravistas. Se por um lado, tais registros e denúncias
são importantes para punir e frear tais práticas, por outro lado, o silêncio ou
até mesmo a negação de relações escravistas no centro moderno e dinâmico
do agronegócio pode conduzir a possíveis vieses de análise e, pour cause, reforçar
a ideologia modernizante que aí se processa.
Além destes registros, há muitos outros relatados pela Pastoral dos
Migrantes, durante as visitas cotidianas que são feitas aos alojamentos dos
migrantes espalhados pelas fazendas de cana e às pensões, situadas nas
chamadas cidades-dormitórios da região. Em 2004, foram visitados 72
alojamentos, e mais de 4 mil pensões localizadas nas cidades dormitórios,
que albergam cerca de 62 mil migrantes, provenientes dos estados do nordeste
e norte dos estados de Minas Gerais e do Paraná.
As denúncias e registros de condições análogas àquelas de trabalho
escravo se reportam aos trabalhadores migrantes, provenientes de várias partes
do país, sobretudo daquelas mais pobres. Este fato sugere uma análise que
leve em conta a segmentação da força de trabalho, porque, na verdade, a
separação entre migrantes e não migrantes entre os trabalhadores de fora e
os locais encobre a divisão étnica do trabalho, dado que a maioria dos
migrantes é constituída por negros e pardos. Isto não significa afirmar que os
locais sejam todos brancos; ao contrário. Muitos deles são descendentes de
trabalhadores negros, mestiços de diferentes matizes, provenientes destas
mesmas regiões, que para cá vieram e se estabeleceram definitivamente a
partir das décadas de 1960 e 1970. As chamadas cidades-dormitórios
encravadas no meio dos canaviais das usinas tiveram um significativo aumento
populacional com a vinda destes migrantes neste período. (SILVA, 1999,
2006). Não obstante, os critérios de regionalidade - paulista e não paulista –
são reapropriados pela ideologia étnico/racial que aprofunda as divisões
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Lutas & Resistências, Londrina, v.1, p. 91-106, set. 2006.
entre os trabalhadores, segmentando-os, segundo a procedência geográfica
e escamoteando a categoria étnico/racial.
Um outro dado extraído dos registros/denúncias se reporta a
superexploração desta força de trabalho, a ponto de extrapolar os limites
físicos, ocasionando as mortes nos canaviais. No período de 2004 a 2006,
houve 14 mortes, registradas pela Pastoral dos Migrantes, provocadas,
supostamente, pelo excesso de esforço, uma verdadeira overdose do trabalho,
denominada birola, pelos trabalhadores4. Além das condições alimentares
insuficientes - causadas pelos baixos salários, do calor excessivo, do elevado
consumo de energia, em virtude de ser um trabalho extremamente extenuante5
-, a imposição da média, ou seja, da quantidade diária de cana cortada, cada
vez mais crescente, tem sido o definidor do aumento da produtividade do
trabalho, principalmente, a partir da década de 1990, quando as máquinas
colhedeiras de cana passaram a ser empregadas em números crescentes. Esta
imposição atinge não somente os migrantes como também os trabalhadores
locais. Por esta razão, estes capitais necessitam de mão-de-obra jovem, dotada
de muita energia física, para o desempenho desta atividade. Assim, a
rotatividade torna-se muito alta, em virtude da reposição constante da força
de trabalho, consumida durante o processo produtivo.
Em síntese, do conjunto de registros/denúncias acima descrito, três
foram as questões levantadas pela presente análise: a segmentação da força
de trabalho, a partir da divisão étnica do trabalho, sem contar a questão de
gênero, pois as mulheres foram praticamente alijadas do corte da cana (SILVA,
1999); a imobilização da força de trabalho de migrantes, muitos dos quais
sujeitados aos gatos em virtude das dívidas contraídas e alojados em condições
extremamente precárias; a superexploração, responsável pelas mortes durante
o processo de trabalho. Vale ainda lembrar que, ademais dos casos relatados,
o estudo de Rumin (2003) na região oeste do estado de S. Paulo constatou a
ocorrência da birola e, em outras pesquisas (SILVA, 2004) também houve
relatos sobre mortes de parentes, atestadas como enfarte pelos médicos,
ocorridas após muitas cãibras durante o corte da cana, geralmente, no período
4 A ocorrência das mortes foi objeto de dez Audiências Públicas, chamadas pela Procuradoria
Geral da República, Ministério Público, Ministério Público do Trabalho, ONGs e Comissão
dos Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, no final de 2005
e início de 2006. A questão central debatida nessas Audiências foram os direitos humanos do
trabalho, além do descumprimento das normas trabalhistas, sobretudo a NR31.
5 O aumento da produtividade ao longo dos últimos anos foi o seguinte: na década de 1980
a exigência era de 5 a 8 toneladas; nos anos de 1990, estes números passam para 8 a 10 e hoje
estão em torno de 12 a 15 toneladas de cana cortadas por dia.
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Lutas & Resistências, Londrina, v.1, p. 91-106, set. 2006.
da tarde. Levanta-se aqui a hipótese de que o número de mortes deva ser
maior do que os conhecidos6.
Com o intuito de aprofundar as reflexões sobre a definição ou a
conceituação deste trabalho e responder aos questionamentos que estes dados
suscitam, optou-se por acrescentar à análise algumas considerações sobre as
correntes invisíveis que atam os trabalhadores a estas relações sociais:
A migração temporária aparece como uma estratégia, como uma
solução material num duplo sentido: por um lado, o assalariamento permite
a compra de alimentos, garantindo, assim, um patamar mínimo de
sobrevivência; por outro, a saída da terra corresponde à volta, já que o trabalho
assalariado é temporário. Cria-se, portanto um elo de complementaridade
bastante estreito entre estas realidades, que, apesar de opostas, se servem
mutuamente. Em outros termos, a economia capitalista avançada necessita
desta mão-de-obra barata em seu espaço por algum tempo, e a economia
miserável necessita do parco dinheiro, auferido por alguns de seus membros
para continuar existindo.
É preciso não esquecer que o migrante parte em busca de melhoria
de vida, isto é, de um projeto de ascensão social. O retorno, ou melhor, a
representação do retorno é carregada destes valores. Logo, os fracassos, as
perdas representariam a ruptura com o ideal da partida, o que pode resultar
em sanções negativas por parte do grupo. Esta poderia ser a explicação para
as ações daqueles que não retornam, que desaparecem. O desgarramento
familiar pode conduzir ao desenraizamento social e cultural, cujo processo
de alienação é reforçado pelo uso de bebidas alcoólicas, que apressam a
morte física e social.
Outro ponto que decorre destas reflexões é o referente aos padrões
de masculinidade, ou seja, aos papéis que devem ser desempenhados pelos
homens. A figura do chefe de família, do provedor, está associada aos padrões
patriarcais, que atravessam todas as classes sociais. Tais padrões, se por um
lado, eles conferem poder aos homens, legitimando a dominação masculina
sobre as mulheres, por outro lado, eles podem ser considerados como
verdadeiros fardos. Deste modo, o homem é identificado como viril,
destemido, capaz de enfrentar todos os perigos. Este é mais um dos elos
6 Segundo recente notícia, Antônio da Silva de 28 anos de idade, alagoano, considerado um
dos melhores cortadores de cana pelos colegas, faleceu em função do excessivo esforço,
provocando-lhe dores, cãibras e a morte, numa usina do município de Denise em Mato
Grosso, em 29 de setembro de 2005 (Jornal do Comércio, Especial, Morte e vida de um sonho
Severino, Recife, 28 de maio de 2006, p. 9).
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destas amarras invisíveis que prendem muitos trabalhadores às redes de
trabalho escravo. Não se trata de desconhecimento da realidade a ser vivida.
Ao contrário. Trata-se de um verdadeiro enfrentamento, de uma provação
para o próprio indivíduo e para o grupo ao qual pertence. É uma espécie de
rito de passagem. O sofrimento e a dor são silenciados em virtude da
internalização de tais valores e padrões sócio-culturais.
No que tange ao contrato de trabalho, há dois aspectos a serem
considerados. Um deles é a relação jurídica estabelecida entre compradores e
vendedores da força de trabalho. Neste momento, os dois agentes são
portadores de direitos iguais, legalmente reconhecidos, uma vez que a operação
envolve um ato de compra e venda feita entre indivíduos livres, isto é, nenhuma
corrente visível obriga, pelo uso da força física, a assinatura do contrato, aliás,
algo também legitimado pelos representantes dos trabalhadores no momento
dos acordos coletivos. O outro aspecto, menos visível, porém não menos
importante, é a aceitação forçada, involuntária, latente deste contrato jurídico.
Neste momento, vale a pena refletir sobre uma possível escolha de
não aceitação do contrato de trabalho por parte dos trabalhadores. No tocante
aos migrantes, que já chegam, em sua maioria, endividados, eles não teriam
condições financeiras de regressar aos seus lugares de origem, distantes a
milhares de quilômetros. Além disso, o regresso sem dinheiro para o sustento
da família significa, antes de tudo, a violação das normas de comportamento
vigentes no interior do grupo ao qual pertence. Portanto, é difícil afirmar que
há liberdade no momento da aceitação do contrato de trabalho. É difícil não
pensar na vergonha do provedor fracassado. Inúmeros são os casos de
trabalhadores desaparecidos. Não somente aqueles que foram assassinados
por capangas, em outras regiões, segundo as denúncias de muitos estudiosos
e agentes de movimentos sociais, como a CPT. Dentre os desaparecidos, há
que se considerar aqueles que fogem e não voltam ao lugar de origem. E
mais. Estas fugas também se reportam aos trabalhadores locais, aqueles que
são despedidos, que são desempregados em virtude do aumento do emprego
de máquinas. Durante as pesquisas em várias cidades dormitórios desta região,
foi constatado que, em torno de 30% das famílias, se referem às chefias de
mulheres. Segundo elas, os homens foram embora. Na realidade, não se trata de
partida, mas de fuga. Fuga por medo das sanções sociais negativas.
A verdadeira coação é aquela que o indivíduo exerce sobre si mesmo,
segundo as reflexões de Elias (1990). Logo, a imposição das altas taxas de
produtividade do trabalho, que extrapolam os limites físicos dos trabalhadores,
levando-os, em alguns casos, à morte, é suportada em virtude deste processo
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de introjeção da autodisciplina que os acompanha durante toda a vida. Do
mesmo modo, pode-se interpretar a reposição energética, por meio da
distribuição do leite de soja ou até mesmo da aplicação de injeções – as
amarelinhas, segundo a definição dos próprios trabalhadores – ou ainda, a
aceitação dos kits – soro, farinha e vitaminas para serem ingeridos durante o
trabalho – a fim de minorar os efeitos de cãibras, provocadas pela perda
excessiva de potássio. Em se tratando dos colhedores de laranja, a fim de
evitar a contaminação dos pomares, os trabalhadores são literalmente
pulverizados com venenos antes do início das atividades. Muitos depoimentos
foram recolhidos acerca desta prática, normalmente negada pelos proprietários
e até mesmo pelos colhedores, em virtude do medo de serem despedidos.
Além das mortes ocorridas nos canaviais, há aquelas não registradas,
e que ocorrem ao longo de um tempo determinado. Doenças como câncer,
provocado pelo uso de veneno, fuligem da cana, além de doenças respiratórias,
alérgicas, da coluna, aliadas a quase total impossibilidade de serem tratadas
em razão da inexistência de recursos financeiros para a compra de remédios,
conduzem à morte física ou social de muitos trabalhadores, cuja depredação
de suas forças impede-os de continuar no mercado de trabalho. Por outro
lado, o trabalho, considerado em sua essência, constitui parte integrante do
homem, enquanto ser social, segundo a tese lukacsiana. Em outros termos, o
trabalho é o definidor da essência humana. Por meio do trabalho,
historicamente, o homem modificou a natureza e modificou-se a si mesmo.
Esta modificação se refere ao próprio ser, à interioridade e não somente às
condições exteriores, objetivas e materiais. O não trabalho significa a
negatividade desta essência, portanto a negatividade do próprio ser social.
Portanto, o trabalho não traz apenas a satisfação das necessidades físicas e
biológicas, como também sociais e ontológicas. A ausência do trabalho
corresponderia à ruptura desta base ontológica do ser social que é o trabalho.
A elevação continuada da média induz ao sofrimento, dor, doenças e
até mesmo à morte. Há ainda, segundo a pesquisa de Andrade (2003), registros
do uso de drogas - maconha e crack - para o aumento da capacidade de
trabalho durante o corte da cana. A frase, Não dá para acompanhar o campo de
cara limpa, reflete a crueza e a brutalidade destas relações de trabalho. A
maconha, segundo depoimento de um trabalhador, alivia as dores nos braços,
já que para o corte de 10 toneladas de cana, são necessários quase 10 mil
golpes de facão. Quanto ao crack, trata-se de uma droga estimulante, visto
que o seu uso possibilita maiores ganhos de produtividade. Este fato, além
de invisível, é proibido, pois, numa sociedade permeada pela violência como
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a brasileira, o silêncio, muitas vezes, é uma estratégia de sobrevivência. O
aumento da taxa de exploração põe em risco não somente a força de trabalho,
como também o próprio trabalhador. Desta sorte, a imposição da média,
bem como a aceitação pelos trabalhadores, se constitui num dos elos das
correntes invisíveis que os atam a estas relações. No que tange aos casos de
reincidentes de trabalho escravo, o retorno à mesma situação ocorre em
virtude da ausência de alternativas, portanto de liberdade. O conteúdo latente
das duas relações é o mesmo. O elemento mascarador é justamente o conteúdo
manifesto, pelo qual há visibilidade nas relações escravistas, em função da
imobilização da força de trabalho e da coerção física ou moral. No que
concerne aos trabalhadores assalariados e membros do contrato jurídico,
estes fatores são camuflados pelas relações livres de compra e venda da
força de trabalho.
À guisa de conclusão: a degradação dos modos de vida
Para o viajante que percorre as rodovias paulistas, após a cidade de
Campinas, indo em qualquer direção, a impressão que terá é a de que estará
no meio de um gigantesco canavial. A história objetivada desta região –
caracterizada pelas marcas das antigas fazendas de café, das moradias dos
colonos e sitiantes, do multicolorido das plantações de milho, algodão,
amendoim, feijão, além de pastagens, das estradas vicinais, das reservas de
matas, de pequenos córregos – está em vias de desaparecimento, cedendo
lugar ao monocromático dos canaviais, exceto as áreas ocupadas pelos laranjais.
Durante os meses de abril a novembro, até mesmo o firmamento aparece
enegrecido pelas gigantescas nuvens de fumaça, advindas das queimadas da
cana, prática predatória ao meio ambiente e à saúde das populações rurais e
urbanas que aí vivem. Segundo recente reportagem, os focos de queimada
aumentam em mais de 1000% durante a safra na região de Ribeirão Preto.
Este fato provoca vários danos à saúde das pessoas da cidade, sem contar
que há o crescimento de até 50% no número de pacientes com problemas
respiratórios (Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão, 28 de março de 2006, p.C1). Os
gases expelidos pela fuligem da cana queimada são: o carbônico, os nitrosos
(sobretudo o monóxido e o dióxido de nitrogênio), e os sulforosos (como
o monóxido e o dióxido de enxofre). Alguns desses gases vão para a
atmosfera e podem reagir com a água, gerando ácidos nitrosos e sulforosos
que, com grande acumulação, podem gerar chuva ácida, prejudicial ao meio
ambiente. Além desses gases, há a formação de vários hidrocarbonetos ou
aromáticos contendo benzeno e similares, muito prejudiciais à saúde.
(ZAMPERNINI, 1997; ALLEN et al., 2004; ROCHA; FRANCO, 2003;
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OPPENHEIMER et al., 2004). Apesar de inúmeras denúncias, inclusive do
Ministério Público, as queimadas continuam, amparadas na Lei Estadual N.
11.241/2002, cujo prazo para a eliminação da queima é o ano de 2031!
A morte nos canaviais paulistas, somada à imobilização e coerção
física ou moral, revelaria tragédias individuais se pensadas em suas
individualidades. Da mesma forma, a destruição ambiental promovida pela
monocultura canavieira revelaria prejuízos ambientais se pensada na simples
transformação do território. Contudo, o que confere sentido concreto a estes
fenômenos é justamente o modelo de desenvolvimento da agricultura
capitalista no país, cujo autodenominado agronegócio é sua forma mais
acabada.
Em estudo sobre os campos nazistas de concentração, Pollak (2000)
sugere que experiências extremas são reveladoras de elementos de identidade
social, de formas de pertencimento e de condições de existência mesmo no
limite físico e psicológico. Sem embargo, a experiência social do trajeto dos
trabalhadores migrantes para o corte da cana em São Paulo, a coerção no
trabalho e a possibilidade da morte no canavial – agora repleta de significados,
não mais ocorrência eventual – compõe um indiscutível cenário de degradação
do trabalho social, cuja situação extrema não impede que mesmo o silêncio
de alguns destes trabalhadores, decorrente dos vários níveis de coerção,
denuncie um intenso processo de gestão da identidade, agora ainda mais
violentada. Nestas circunstâncias, a reinvenção moderna de exploração do
trabalho no agronegócio e a pilhagem ambiental por este promovida
compõem um quadro mais amplo de degradação dos modos de vida. Ou
seja, levando ao limite crítico as experiências sociais a partir do trabalho e
gerando níveis progressivos de exaustão dos recursos naturais, este modelo
de agricultura revela a degradação de suas próprias condições de existência.
Revela seus próprios limites através da destruição dos trabalhadores e da
natureza.
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RUMIN, C. Trabalho

VISITA DE IVAN VALENTE (PSOL)

A visita do deputado federal, Ivan Valente, considerado um dos três melhores deputados co Congresso Nacional, a Ribeirão Preto foi um verdadeiro sucesso. A assertiva é do jornal "Enfim". Recebido por várias emissoras de rádio e televisão, no período da tarde manteve reunião com várias lideranças partidárias na Câmara Municipal. A participação de lideranças ambientalistas, militantes do PSOL e de outros partidos políticos, comprometidos com a causa ambiental, contra o desmatamento e pela defesa intransigente dos trabalhadores rurais sem terra, lotou a Câmara Municipal. Sem dúvida com quase 3.000 votos na em Ribeirão Preto e região, sem receber recursos empresariais ou do agronegócio, com uma campanha modesta, o deputado federal Ivan Valente, demonstrou que ainda é possível fazer política com seriedade e principalmente encarar de frente a política neoliberal e do agronegócio que domina hoje o Congresso Nacional e os Governos estaduais. Em Ribeirão Preto, após um longo período de asfíxia a oposção real volta a ser fortalecida, reunindo suas forças em torno do PSOL, que vai unido para as eleições de 2.012, que sairá com chapa completa (Prfeito, Vice e Vereadores) sem o jogo duplo, que os partidos chamados de esquerda, com raras exceções fizeram até aqui. É necessário unir forças em torno do PSOL, que aumentou sua representação no Congresso Nacional e que na região tem crescido com qualidade, contando com forças democráticas e de oposição, para enfrentar os desafios da política conservadora presente no País desde Sarney, FHC e que permanece de forma disfarçada e manipulada pelo Governo Lula, que finge combater as elites e que no silêncio é um seus grandes aliados. Um populista da pior espécie, sem as virtudes de Getúlio e menos ainda de Hugo Chaves. Companheiros, unam-se a nós. Ribeirão Preto, por ser centro de região, cidade estudantil, centro de irradiação de idéias, não pode permanecer refém dos atuais detentores do Poder, cujos nomes são conhecidos e não vale a pena mencionar. Filie-se ao PSOL, candidate-se ao cargo que quiser. O PSOL é democrático, ético, sério e defernde claramente um modelo socialista e combate permanente a atual politica neoliberal e globalização, que são características do capitalismo selvagem, que esmaga trabalhadores e amplia o lucro, favorecendo a ganância de poucos. (antoniocalixto@aasp.org.br)

NO CORAÇÃO DO GIGANTE

Por quatro séculos nenhuma comunidade ou sociedade (indígena, de colonizadores ou bandeirantes) abalou a integridade desse complexo ecossistema. Nossa colonização focara basicamente a costa e o interior ficou em segundo plano.

Enio Rodrigo

Na década de 1950, porém, Brasília foi instaurada no “coração do Brasil” e, a partir daí, a região centro-oeste se tornou a nova fronteira agrícola e o Cerrado, assim como outros grandes biomas em todo o mundo, entrou na luta pela sobrevivência frente ao “progresso”. E o progresso, em termos modernistas, que balizou também a arquitetura da capital, não deixou muito espaço para que o projeto da natureza continuasse a se desenvolver sem a interferência do homem. Brasília, aliás, foi seu algoz novamente quando, em 1988, os parlamentares responsáveis pelo capítulo do meio ambiente da Constituição Federal não incluíram o Cerrado nem a Caatinga como patrimônios nacionais. Desde então esse bioma resiste à degradação.

Os mais de 2 milhões de quilômetros quadrados que o Cerrado ocupa no Brasil central somam espantosos 23,92% do território nacional, quase ao longo de todo o estado de Goiás e Tocantins, grande parte do Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, além de porções de outros 6 estados, de acordo com dados do IBGE. Além disso, ele adentra os territórios do Paraguai e da Bolívia. Tamanha dimensão perde apenas para a Amazônia, bioma que está muito mais presente no noticiário e no imaginário popular. A consequência é que poucos se dão conta dos problemas que o Cerrado enfrenta por abrigar a região que mais produz grãos, gado e carvão vegetal do país, além do algodão e biocombustível, resultando em cerca de 30% do PIB. Mas o preço tem sido alto: o bioma está bastante impactado pela ação humana, e sua destruição vem ocorrendo de maneira agressiva (leia reportagem sobre o tema).

Esses efeitos antrópicos não são resultado da urbanização da região, uma vez que há baixa densidade demográfica, que possibilita vastas regiões disponíveis para cultivo, este sim, responsável pela maior pressão ao bioma. Ao mesmo tempo, os altos investimentos na produção agropecuária da região – estimados em R$ 41 bilhões, apenas em 2007 – parecem não se reverter para melhorias no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região. Os estados onde o Cerrado é predominante têm, na média, IDH equivalente a 0,768, ou seja, abaixo da média brasileira de 0,771 (incluindo o Distrito Federal), considerado desenvolvimento médio.

Multipaisagem

“A imagem que se tem do Cerrado, no geral, é a de um local com uma vegetação não muito bonita e de um clima seco o ano todo, o que é completamente errado”, enfatiza José Carlos Souza Silva, que coordena o Núcleo de Recursos Naturais da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Cerrados, lembrando que o bioma é considerado o “berço das águas” e compreende as nascentes dos rios Tocantins, Paraná e São Francisco, além de vários rios que abastecem a região amazônica e o Pantanal. De acordo com o pesquisador, essa imagem se deve à maioria dos livros didáticos, consequência do pequeno esquecimento dos parlamentares da Constituição de 1988. Consequência também de um estigma que acompanhou o Cerrado por muito tempo: ser um bioma de “segunda classe”. O jornalista Washington Novaes – atualmente supervisor geral do programa Repórter Eco, da TV Cultura de São Paulo – conta que em uma das reuniões para o relatório da Rio 92, um dos participantes indagou o presidente do Ibama sobre a inclusão, no relatório final, do desmatamento e das queimadas no Cerrado. A resposta, testemunhada pelo jornalista, foi “ainda bem que é no Cerrado e não na Amazônia”.

Em meio ao apagamento do Cerrado, os representantes de produtores agrícolas festejam a demora em se estabelecer políticas conservacionistas, fruto de disputas frequentes dentro do governo federal, entre o Ministério do Meio Ambiente e o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Exemplo disso é a disputa que envolveu o veto da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, à concessão de crédito agrícola para produtores que desmatavam ou em municípios de áreas de transição de biomas, no início do ano de 2008. A lista contava com 527 municípios. Desses, 96 foram excluídos por uma nova portaria assinada pelo ministro que a substituiu no cargo, Carlos Minc, no que os ambientalistas classificaram como uma vitória dos desmatadores.

Tamanho confronto deveria colocar o Cerrado na linha de frente das prioridades nacionais de conservação. O bioma é residência de, aproximadamente, 40 grupos étnicos (cerca de 45 mil índios) dentre os quais representantes dos Xavantes, Xerentes, Krahôs, Bororos, Karajás, Kayapós, Canelas, além dos Avá-Canoeiros, Tapuyas e Karajás, que beiram a extinção. Dentre suas mais de 12 mil espécies conhecidas de flora e outras mais de 2 mil de fauna (leia matéria sobre biodiversidade), há muitas que ocorrem exclusivamente nesse bioma (são endêmicas), e de 2 a 5% (segundo autores mais otimistas) do seu território está seguro em parques ou unidades de conservação.

Iniciativas

Depois da mudança da capital federal para o coração do país, a população teve um rápido e drástico aumento, transformando a região Centro-Oeste na mais nova fronteira agrícola, concentrando, atualmente, 34,8% da produção nacional de cereais, leguminosas e oleaginosas (especialmente soja), e quase o mesmo percentual de pecuária, segundo dados do IBGE. Há ainda a queima da vegetação nativa para produzir carvão vegetal, que alimenta boa parte das indústrias de ferro-gusa. “É uma das formas mais improdutivas de degradação do Cerrado”, afirma Leandro Baungarten, coordenador de ciências do programa Savanas Centrais, da organização conservacionista The Nature Conservancy.

O resultado disso é fácil de imaginar. de acordo com estimativas feitas em 2002, pela Conservação Internacional, o Cerrado teria perdas médias de 1,5% do território ao ano. Para se ter idéia do ritmo de desmatamento, a Amazônia perdeu cerca de 0,24% de seu território em 2008. “Alguns pesquisadores chegam a falar que as atuais faixas de proteção não garantiriam a sobrevivência do bioma, por não contemplarem a contiguidade dos territórios originais remanescentes” alerta Washinton Novaes.

A rápida transformação do Cerrado e a ameaça às suas diversas espécies fez com que iniciativas governamentais e não-governamentais (através de ONGs), pesquisadores e mesmo a iniciativa privada fossem forçadas a tomar providências. Em 1996, foi criada a Rede Cerrado, uma iniciativa de várias ONGs para promover a implantação de projetos sustentáveis. Em 2003, após quase dez anos de debate entre os diversos grupos envolvidos com o tema, a Rede publicou uma carta aberta endereçada ao Ministério do Meio Ambiente (à época para a ministra Marina Silva) com recomendações de ações urgentes para a conservação da área, o que proporcionou a criação do programa Cerrado Sustentável. Há iniciativas estaduais, por exemplo, como as de Goiás que, através da Agenda 21 Goiás, baseando-se nas idéias do Global Environment Outlook da ONU, criou áreas de proteção, aumentando e consolidando áreas existentes, especialmente projetos que consolidassem “corredores ecológicos”.

Há ainda outras iniciativas como as de ONGs internacionais, a exemplo da Conservação Internacional (CI), a World Wildlife Foundation (WWF) e a The Nature Conservancy, que trabalham focando em alternativas de economia sustentável junto às populações locais próximas aos parques. Iniciativas privadas como da empresa O Boticário, que visa a criação de reservas privadas, em parceria com ONGs, e iniciativas não governamentais nacionais como o Instituto Cerrado.

A boa notícia é que os dados do IBGE, em levantamento feito em 2005 sobre Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil), mostram que o número de ONGs envolvidas com meio ambiente e proteção animal, na região dos estados que compõem a floresta amazônica, era de aproximadamente 143 unidades, contra 184 ONGs trabalhando na região Centro-Oeste. Com mais projetos de engajamento esperar-se-ia que o quadro fosse positivo para o Cerrado, mas não é o que ocorre.

Isso pode ser explicado pelo fato que o governo brasileiro não investe na proteção da área. Segundo estudos feitos pela Conservação Internacional, apresentados no II Simpósio Internacional de Savanas Tropicais, por exemplo, o dinheiro investido foi da ordem de R$ 107 milhões, suficiente apenas para pagar os salários dos envolvidos em projetos de conservação mantidos pelo Ministério do Meio Ambiente. Na verdade, a palavra correta seria “revertido” pois, considerando os lucros das atividades agropecuárias na região, o dinheiro deveria ser reinvestido na proteção das riquezas naturais, manutenção de fontes de água e auxílio no equilíbrio do clima global e que pertencem, em última instância, a todos os brasileiros. A estimativa da CI é que o ideal seria reverter uma quantia equivalente a R$ 227 milhões, pelo menos, algo como 0,5% do que foi investido na agropecuária através do Plano Safra de anos anteriores.

Pesquisas e soluções

Outra instituição com papel de destaque na região é a Embrapa, que mantém a divisão Cerrados e conta, atualmente, com cerca de 105 pesquisadores, além de parcerias com universidades em todo o país, com programas de manejo sustentável de recursos naturais, recuperação de áreas degradadas e pesquisas com plantas nativas com potencial econômico, além de projetos de agricultura familiar. “Em alguns trabalhos, onde acompanhamos o que acontece com áreas de fazendas abandonadas, percebemos que uma das características do Cerrado é conseguir recuperar, com certa velocidade, a cobertura vegetal original. Os piores casos são aqueles com pastagens que utilizavam espécies de gramíneas africanas para alimentação do gado”, diz José Carlos Souza Silva, da Embrapa e professor de botânica e ciências florestais na Universidade de Brasília (UnB). O pesquisador afirma que a instalação de grandes monoculturas sem um estudo específico do solo (que no Cerrado varia bastante), pode causar sérios problemas, entre eles os impactos do aquecimento global na área, previstos por modelos matemáticos: o avanço da Caatinga sobre o Cerrado. O pesquisador também afirma que as pesquisas na região vêm aumentando. “Não que não houvesse interesse antes, mas trabalhos mais recentes, especialmente de pesquisadores que trabalham com micro-organismos, têm trazido diversas boas surpresas. O Cerrado é riquíssimo em termos de biodiversidade, e falta muito ainda a descobrir”.

“Uma coisa que é preciso entender é que não há antagonismo entre produção agrícola e conservação. Ao aumentar a produção por meio da tecnologia ou projetos de pesquisa de solo não é preciso aumentar a área de plantio com tanta voracidade”, diz Leandro Baungarten. Mas é preciso regularizar a situação de fazendas implantadas irregularmente. “Algumas delas não mantiveram sua área natural de reserva legal. A solução é criar ferramentas e mecanismos para que isso seja resolvido”, sugere. Um dos meios de fazer isso seria regenerando as áreas devastadas, comprando outras áreas para serem conservadas ou comprando participações em reservas ambientais.

Mas ainda falta muito trabalho para que o bioma não pereça nas próximas décadas. Entre outras coisas faltam números confiáveis, de acordo com Baungarten. A maioria dos dados disponíveis para o Cerrado é, ainda, produzida a partir de estimativas (consequentemente há grande variação em quase todas as informações) e observações em trabalhos de campo, que aos poucos começam a ser compilados e transformados em publicações (leia resenha). E falta muito a avançar na legislação também. Ainda tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, a Proposta de Emenda à Constitução (PEC) 115/95 que inclui o Cerrado (e a Caatinga, graças a uma nova redação) nos biomas considerados patrimônio nacional, mas que está emperrada há quase 14 anos, na bancada ruralista. Será que o “bioma de segunda classe” será um dia promovido ou irá direto para o preocupante rol de ambientes em perigo de extinção?





ComCiência










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ENTREVISTA DE FABIO KONDER COMPARATO

Entrevista com Fabio Konder Comparato: “Nós nunca tivemos democracia até hoje”


Professor da Faculdade de Direito da USP, o jurista Fabio Konder Comparato é conhecido por sua longa e firme militância na luta pelos direitos humanos e democráticos no Brasil. Tem contribuído com inúmeras entidades e movimentos sociais na formulação de propostas para a transformação do povo brasileiro no sujeito de sua própria soberania. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, ele analisa a questão do poder no Brasil, as várias formas dissimuladas de se adiar a democracia, os instrumentos para aperfeiçoar a participação popular nos destinos do país e outros aspectos da maior relevância para a compreensão da nossa realidade. Os argumentos lúcidos e pedagógicos do professor Fabio Konder Comparato são imperdíveis.

Caros Amigos

Tatiana Merlino - O senhor nasceu em Santos?

Fabio Konder Comparato - Não me perguntem se eu sou santista... (risos)

Hamilton Octavio de Souza – É santista?

Eu não torço mais para nenhum clube. Futebol é o ópio do povo (risos).

Tatiana Merlino – Mas, o senhor nasceu em Santos, em que ano?

Em 1936, de modo que daqui alguns dias eu farei, com a graça de Deus, 74 anos. Fiquei quatro anos morando no Guarujá, meu pai tinha um hotel lá. Depois, eu vim para São Paulo com a família. Tive uma formação de escola primária excelente. Até hoje tenho uma grande saudade das minhas professoras primárias, que eram professoras daquele tempo antigo, formadas no Elvira Brandão, muito sérias. Depois, eu cursei o Colégio São Luís; de modo que eu fui formado e deformado por jesuítas. Entrei na Faculdade de Direito em 1955, e terminei o curso em 1959. Depois, até 1963 eu fiquei na França, fazendo meu doutorado em Direito. Voltei para o Brasil e fui trabalhar em Brasília, com Evandro Lins e Silva, que era Ministro do Supremo Tribunal Federal. Lá trabalhei como secretário jurídico dele. Saí de Brasília com uma hepatite atroz, provocada pelo golpe de Estado de 1964. Em seguida advoguei, tornei-me livre-docente da Faculdade de Direito da USP e depois professor titular. Comecei lecionando Direito Comercial, mas depois me converti e passei a lecionar Direitos Humanos.

Tatiana Merlino – Na faculdade o senhor teve algum professor que o tenha influenciado?

O professor que mais me impressionou foi exatamente um professor de Direito Comercial. Acho que foi por ele que eu fiz isso...

Hamilton de Souza – Tinha a ver com Direitos Humanos?

Não. Mas, eu não lamento o longo período em que lecionei Direito Comercial, porque me permitiu entrar nos arcanos do capitalismo, desmontar toda a estrutura capitalista que enquadra a nossa vida social.

Tatiana Merlino – Como se deu sua conversão para os Direitos Humanos, por qual influência?

Foi, sem dúvida, por causa da Ditadura Militar. E sobretudo, porque fui convidado por Dom Paulo Evaristo Arns para fazer parte da Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo. E lá foi, realmente, um aprendizado. Dom Paulo foi um dos baluartes da luta pela defesa da dignidade humana. Lembro, apenas para dar uma ilustração, de como ele era, na época, procurado por aqueles que sofriam com os sofrimentos e a morte de seus familiares. O pai do Bernardo Kucinski, por exemplo, nunca se recuperou da morte da filha, Ana Rosa Kucinski. Até hoje não se sabe do paradeiro do cadáver dela. Ele ia procurar Dom Paulo todos os dias. Dom Paulo o recebia nem que fosse por 5 minutos. O objetivo que Dom Paulo deu para a Comissão de Justiça e Paz foi justamente o de divulgar todos os crimes do regime militar que nós soubéssemos. Então, vinham dezenas de pessoas, dizendo: “Meu filho desapareceu, estava na rua e foi preso. Nós anotávamos tudo isso, entregávamos para Dom Paulo, que ia regularmente ao quartel-general II Exército e entregava a lista dos desaparecidos ao General Comandante. Para que eles soubessem que nós sabíamos, e não inventassem mentiras, como fizeram quando mataram sob tortura o Luiz Eduardo Merlino, por exemplo: “Ele tentou fugir quando era conduzido numa viatura militar, foi atropelado e morreu.” A ditadura militar temia, sobretudo, as manifestações no exterior. É por isso que, hoje, nós temos que denunciar sistematicamente, no exterior, o acobertamento dos assassinos e torturadores do regime militar pelo Poder Judiciário. O Estado brasileiro tem receio disso. Quando meus filhos eram bebês, e viajávamos, minha mulher e eu para a França (íamos todos os anos, porque minha mulher é francesa), eu levava documentos nos cueiros deles. Eram relatos de atrocidades e listas de pessoas presas, mortas, desaparecidas. E, naquela época, nós entregávamos isso a um padre francês que morou cinco anos aqui no Brasil. E ele divulgava isso na Igreja Católica. Mas, a Igreja Católica, no Brasil, salvo algumas figuras exemplares, como Dom Paulo e Dom Helder Câmara, continuava firmemente conservadora.



Hamilton Octavio de Souza - Nesse período da Comissão de Justiça e Paz, o senhor já tinha participação em eventos, atos, com relação à Anistia, à luta pela redemocratização do país? Como o senhor atuava, o senhor tinha militância nesse tempo?

Eu não tinha uma participação muito ativa fora da Comissão de Justiça e Paz. Mas participava de alguns eventos públicos. Por exemplo, eu estive na Catedral de São Paulo, quando da celebração ecumênica da morte de Alexandre Vannuchi Leme. Eu lembro que, ao sair da Catedral, havia todo um aparato da polícia militar, com câmeras fotográficas, e ostensivamente abri o guarda-chuva e avancei em direção a eles para que eles não me fotografassem. Mas eles estavam fartos de saber da minha posição política. Eu não fui molestado, porque nunca me aproximei de nenhum partido ou movimento da esquerda. Mas, eles me acompanhavam. Numa certa época, eu comecei a trabalhar em banco, cheguei a diretor adjunto de um banco.

Tatiana Merlino - Simultâneo à Comissão Justiça e Paz?

Exatamente. E uma vez o diretor presidente do banco me chamou e indagou: “O que o senhor acha do terrorismo?” Saquei logo de onde vinha a pergunta. Respondi com outra pergunta: “Mas, qual deles: o oficial ou o outro?” Aí ele riu um pouco....

Tatiana Merlino - Como o senhor avalia o período da redemocratização e a justiça de transição, ou a inexistência de justiça de transição que houve no Brasil?

Esse é apenas um pormenor da manutenção íntegra e até hoje inabalada da oligarquia. Se há uma constante na História do Brasil, é o regime oligárquico. É sempre uma minoria de ricos e poderosos que comanda, mas com uma diferença grande em relação a outros países. Nós, aqui, sempre nos apresentamos como não oligarcas. A nossa política é sempre de duas faces: uma face externa, civilizada, respeitadora dos direitos, e uma face interna, cruel, sem eira nem beira. A meu ver, isto é uma conseqüência do regime escravista que marcou profundamente a nossa mentalidade coletiva. O senhor de engenho, o senhor de escravos, por exemplo, quando vinha à cidade, estava sempre elegantemente trajado, era afável, sorridente e polido com todo mundo. Bastava, no entanto, voltar ao seu domicílio rural, para que ele logo revelasse a sua natureza grosseira e egoísta. Nós mantivemos essa duplicidade de caráter em toda a nossa vida política.

Quando foi feita a Independência, estava em pleno vigor, no Ocidente, a ideologia liberal, e, devido ao nosso complexo colonial, nós não podíamos deixar de ser liberais. Então, iniciou-se o trabalho de elaboração da Constituição, logo em 1823. E os constituintes resolveram instituir no Brasil um regime liberal, com a instituição de freios contra o abuso de poder. Evidentemente, isso foi contado ao Imperador, que imediatamente mandou fechar a Assembléia Constituinte. Mas, qual foi a declaração dele? “Darei ao povo brasileiro uma Constituição duplicadamente mais liberal.” Eles não perceberam a aberrante contradição: uma Constituição outorgada pelo poder que era duplicadamente mais liberal do que aquela que estava sendo feita pelos representantes do povo. Bom, essa Constituição não continha a menor alusão à escravidão e dispunha: “São abolidas as penas cruéis, a tortura, o ferro quente.” Porque todo escravo tinha o corpo marcado por ferro em brasa. Essa marca era dada desde o porto de embarque na África. Pois bem, apesar dessa proibição da Constituição de 1824, durante todo o Império nós continuamos a marcar com ferro em brasa os escravos. A Constituição proibia os açoites, mas seis anos depois foi promulgado o Código Criminal do Império que estabeleceu a pena de açoites no máximo de 50 por dia. E é sabido que essa pena só se aplicava aos escravos e, geralmente, eles recebiam 200 açoites por dia. Houve vários casos de escravos que morreram em razão das chibatadas recebidas. E, aliás, a pena de açoite só foi eliminada no Brasil em 1886, ou seja, às vésperas da abolição da escravatura.

Em 1870, para continuar essa duplicidade típica da nossa política, como vocês sabem, foi lançado o Manifesto Republicano, aqui no estado de São Paulo. Esse manifesto usa da palavra democracia e expressões cognatas – como liberdades democráticas, princípios democráticos – nada menos do que 28 vezes. Não diz uma palavra sobre a escravidão. E, aliás, o partido republicano votou contra a lei do ventre livre no ano seguinte ao manifesto, em 1871, e votou até contra a Lei Áurea. Em 1878, votou a favor da abolição do voto dos analfabetos. A Proclamação da República, todo mundo sabe, foi um “lamentável mal entendido”, para usar a expressão famosa de Sérgio Buarque de Hollanda. E, efetivamente, o Marechal Deodoro não queria a abolição da monarquia, queria derrubar o ministério do Visconde de Ouro Preto. Mas aí, no embalo, os seus amigos positivistas o convenceram que era melhor derrubar a monarquia. Pois bem, até 1930, nós tivemos a República Velha, que, como dizia meu avô, foi substituída pela República Velhaca. E, por que foi feita a Revolução de 1930? Todo mundo sabe. As fraudes eleitorais.

Hamilton Octavio de Souza - São Paulo e Minas que comandavam as fraudes.

Sim, pois é. Foi feita a revolução para isso. Sete anos depois o regime desembocou num golpe de Estado, que suprimiu as eleições. A autoproclamada “Revolução” de 1964 foi feita em nome de quê? Leiam os documentos: a ordem democrática. Hoje, é preciso dizer que não é só no Brasil, mas no mundo todo que a palavra democracia tem um sentido contraditório com o conceito original de democracia. O grande partido da direita na Suécia, que agora chegou ao parlamento sueco, pela primeira vez, um partido xenófobo e racista, chama-se Suécia Democrática. E, num certo país da América Latina, como todo mundo sabe, o partido mais à direita do espectro político chama-se como mesmo?

Hamilton Octavio de Souza - Se chama Democratas.

Então, esta é a nossa realidade. É dentro desse quadro que se pode e se deve analisar o processo eleitoral. Ou seja, nunca dar o poder ao povo, dar-lhe apenas uma aparência de poder. E, se possível, uma aparência festiva, alegre. Essa disputa eleitoral, que nós estamos assistindo, ela só interessa, rigorosamente, ao meio político. O povo não está, absolutamente, acompanhando a campanha eleitoral. Vai votar, maciçamente, na candidata de Lula, mas para ele não tem muito interesse essa campanha eleitoral. Então, as eleições, o que são? São um teatro. Oficialmente, os eleitos representam o povo. É o que está na Constituição. Na realidade, eles representam perante o povo, são atores teatrais. Mas, com um detalhe: eles não se interessam pelas vaias ou pelos aplausos do povo. Eles ficam de olhos postos nos bastidores, onde estão os donos do poder. É isso que é importante.

De modo que, para nós, hoje, é preciso deixar de lado o superficial e encarar o essencial. O que é o essencial? Como está composta, hoje, a oligarquia brasileira. E como eliminá-la. Como está composta a oligarquia brasileira? Obviamente, há um elemento que permanece o mesmo desde 1500: os homens da riqueza. Só que hoje eles são variados: os grandes proprietários rurais, os banqueiros, os empresários comerciais, os grandes comerciantes. Mas o elemento politicamente mais importante da oligarquia atual é o dos donos dos grandes veículos de comunicação de massa: a imprensa, o rádio e a televisão. O povo está excluído desse espaço de comunicação, que é fundamental em uma sociedade de massas. Ora, esse espaço é público, isto é, pertence ao povo. Ele foi apropriado por grandes empresários, que fizeram da sua exploração um formidável instrumento de poder, político e econômico.

Hoje, os oligarcas brasileiros já montaram em esquema que torna as eleições um simples teatro político. É claro que eles não podem, em todas as ocasiões, fazer um presidente da República, por exemplo. Mas eles podem – e já o fizeram – esvaziar o processo eleitoral, tirando do povo todo o poder decisório em última instância e transferindo-o aos eleitos pelo povo; eleitos esses cuja personalidade, na grande maioria dos casos, é inteiramente fabricada pelos marqueteiros através dos meios de comunicação de massa.

O único risco para a oligarquia brasileira (e latino-americana, de modo geral) é a presidência da República, porque a tradição latino-americana é de hegemonia do chefe do Estado em relação aos demais Poderes do Estado. Se o presidente decidir desencadear um processo de transformação das estruturas sócio-econômicas do país, por exemplo, ele porá em perigo a continuidade do poder oligárquico.

Ora, Luiz Inácio Lula da Silva já demonstrou que não encarna esse personagem perigoso para a oligarquia. Ele é o maior talento populista da história política do Brasil, muito superior a Getúlio Vargas. Mas um populista francamente conservador, ao contrário de Getúlio ou de Hugo Chávez, por exemplo.

Mas o que significa ser um político populista? Populista é um político que tem a adesão muitas vezes fanática do povo, que tem um extraordinário carisma popular, mas que mantém o povo perpetuamente longe do poder. O populista conservador pode até, se isso agradar ao povo, fazer críticas aos oligarcas, mas mantém com eles um acordo tácito de permanência do velho esquema de poder.

Ora, isto representa a manutenção do povo brasileiro na condição de menor impúbere, ou seja, de pessoa absolutamente incapaz de tomar decisões válidas. O populista é uma espécie de pai ou tutor, que trata os filhos com o maior carinho, enche-os de presentes, brinquedos, etc, mas nunca lhes dá o essencial: a verdadeira educação para que eles possam, no futuro, tomar sozinhos as suas decisões. É um falso pai. O verdadeiro pai existe para desaparecer. Se o pai não desaparecer, enquanto pai, alguma coisa falhou, uma coisa essencial, que é a educação dos filhos para a maturidade. O fundamental do líder populista é que ele mantém o povo muito satisfeito, mas num estado de perpétua menoridade.

Tatiana Merlino - Por que o senhor acha que ele supera o Getúlio Vargas?

Porque Getúlio Vargas tinha, teve, até o fim, uma oposição ferrenha, raivosa, não de partidos políticos, eles não existiam, mas dos grandes fazendeiros de São Paulo. Aliás, fizeram até uma revolução em 1932. Além disso, ele era autoritário, por convicção positivista: a chamada “ditadura republicana”. Lula não, ao contrário do que se afirmou em um desatinado manifesto recente. Ele tem horror à coação, à violência. Ou seja, ele é o avesso de Getúlio. Basta ler Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, para se perceber que o regime militar de 64 não inventou nada. Foi uma reedição desse aspecto tenebroso de Getúlio.

Hamilton Octavio de Souza – Esse controle que o Lula exerce, como isso tem sido possível num país carente, com demandas seculares, desigualdade?

A mentalidade do Lula não é de raciocínio frio, ela é quase que toda dominada pela sensibilidade e a intuição. É por isso que ele tem lances geniais no desmonte da oposição. É um talento por assim dizer inato. E é por isso que todo esse pessoal do PT foi atrás dele, porque senão eles não subiriam, jamais. Não preciso dar nomes, mas nenhum deles tem o milésimo do talento político do Lula. Eles foram atrás e chegaram lá. Mas são todos infantis em política. Ao chegarem ao poder, procederam como a criança que nunca comeu mel: foram comer e se lambuzaram todos.

Mas, enfim, esse é o homem. Isso não significa que ele seja totalmente negativo. As boas coisas do governo Lula são mantidas por influência dos seus bons companheiros. E ele sabe ouvi-los, graças a Deus. Em matéria de direitos humanos, nós temos que reconhecer o trabalho admirável do Paulo de Tarso Vannuchi. Em matéria de educação, eu entendo que o Fernando Haddad fez um bom trabalho. Mas isso não compensa o lado extremamente negativo dos maus elementos que pressionam Lula. Sinto, por exemplo, que cede a tudo aquilo que o Nelson Jobim pede. Será preciso relembrar que, na véspera do julgamento da ação movida pelo Conselho Federal da OAB no Supremo Tribunal Federal sobre a abrangência da Lei de Anistia, Lula convidou todos os ministros do Supremo para jantar no Palácio do Planalto? Não é difícil imaginar o assunto que foi objeto de debate durante essa simpática refeição. Aliás, um ministro do Supremo Tribunal Federal me disse: “Comparato, você não imagina as pressões que nós recebemos...”

Tatiana Merlino – Do presidente?

Obviamente que do governo. Digamos que o Lula não tenha feito pessoalmente isso. Mas, ele também não pode ignorar que isto está sendo feito diante dele. Por acaso ele ignorava o esquema do mensalão?

Hamilton Octavio de Souza – A pressão é no sentido de se ...

Dar anistia aos torturadores, assassinos e estupradores do regime militar, porque todos eles se declaravam defensores da ordem democrática. Logo após o golpe, em 64, eles se declaravam também defensores da civilização cristã.

Nesse ponto eu sigo o grande método da antiga Ação Católica: “ver, julgar e agir”. Que é, aliás, o método que nós procuramos seguir com os nossos alunos na Escola de Governo, aqui em São Paulo. Justamente, eu me esqueci de dizer que há 20 anos, juntamente com os amigos Maria Victoria Benevides e Claudineu de Melo, e também o saudoso professor Goffredo da Silva Telles Jr., nós criamos uma escola de formação de líderes políticos. No começo, procurávamos formar governantes. Hoje, nós tentamos formar educadores políticos. Pois bem, esse “ver, julgar e agir”, nós temos que utilizar para a situação política atual. Nós só podemos compreender a situação política atual, se tivermos a capacidade de enxergar por dentro as ações políticas, tanto do PT quanto do PSDB e dos demais partidos. E vamos perceber que há, como eu disse, um elemento que permanece incólume na vida política brasileira: é a oligarquia. Nós sempre vivemos sob regime oligárquico, pois o poder soberano sempre pertenceu à minoria dos ricos.



Tatiana Merlino – O senhor disse que as eleições não mudam nada a configuração da oligarquia. O senhor está se referindo às eleições de agora, ou de um modo geral?

De modo geral.



Tatiana Merlino - Como é possível mudar essa configuração?

Nós temos que saber como mudar e quais são os pontos fracos da oligarquia. Porque ela não existe no vácuo. Se ela se mantém, é porque o povo aceita esse estado de coisas. E por que o povo aceita? Em grande parte, porque ele acha que tem participação política através das eleições. Foi por isso, aliás, que o regime militar não as eliminou. Era preciso que o povo se sentisse participante e não mero espectador do teatro político.

Pois bem. Como é que nós podemos mudar isso? Nós temos que seguir dois caminhos convergentes. É preciso, ao mesmo tempo, transformar a mentalidade coletiva e mudar as instituições políticas.

O que significa mudar a mentalidade política? Ainda aí é preciso ver, julgar e agir. Nós temos uma herança de séculos, nas camadas mais pobres do povo, de servilismo e de dificuldade de ação comunitária. Nós sempre somos dispersos, disseminados, não sabemos agir por nós mesmo, e atuar em conjunto. Nós sempre aceitamos uma situação de dependência em relação aos que detêm o poder, esperando que esse senhor todo-poderoso seja benévolo e compreenda as dificuldades de povo. Durante séculos, mais de 80% da população brasileira vivendo no campo, este senhor foi o grande proprietário rural, senhor de escravos. Agora, com a urbanização, 80% da população brasileira é urbana, é uma inversão completa. Com a criação da sociedade de massas, foi preciso que esse poder se transformasse. Ele não é mais local e pessoal. É um poder geral e impessoal, de certa maneira invisível. Os “donos do poder” nunca entram em diálogo pessoal com o povo. Eles se servem do instrumental fantástico dos meios de comunicação de massa, para distração geral; para que o povo não pense em si mesmo e não enxergue o buraco em que está metido. Daí a intoxicação futebolística. Daí o fato de que a novela das oito na Globo ser protegida como um programa sagrado. Mas, concomitantemente, é preciso que exista uma liderança pessoal, e aí vem o populismo. Eu fico pensando que o advento do Lula em nossa vida política atual representou para os nossos oligarcas algo como ganhar o maior prêmio da megasena.

Cecília Luedemann - Depois do processo de redemocratização, com a entrada do PT no jogo político, e a transformação do Lula em alguém que poderia ser um Getúlio Vargas mais moderno, poderia ser um populista, foi feito um pacto capital e trabalho? É isso que nós estamos vendo hoje?

Hoje não existe mais organização do trabalho, o poder dos sindicatos é cada vez menor. Por outro lado, como disse, persiste nas camadas mais pobres do povo a mentalidade servil e a ausência de espírito comunitário.

Eu contesto essa palavra: redemocratização. Nós nunca tivemos democracia até hoje, porque democracia significa soberania popular, e soberania popular significa que o povo tem o poder supremo de designar os governantes, de fiscalizar a sua atuação, de responsabilizá-los, de demiti-los e de fixar as grandes diretrizes da ação estatal para o futuro.

É preciso ter instituições políticas para isso. Quais são? São várias. Qual é a lei maior? É a Constituição. A quem compete aprovar uma Constituição? Obviamente, a quem tem o poder supremo. Ora, o povo brasileiro nunca aprovou Constituição alguma. A Constituição atualmente em vigor já foi emendada, ou melhor, remendada até hoje 70 vezes. Em nenhuma dessas ocasiões o povo brasileiro foi chamado para dizer se concordava ou não com a emenda a ser introduzida na Constituição. É preciso começar, portanto, por dar ao povo o direito elementar de manifestar a sua vontade, através de referendos e plebiscitos. Ora, o que fizeram os nossos oligarcas? Puseram na Constituição, para americano ver, que referendos e plebiscitos são manifestações da soberania popular. Mas acrescentaram, em um dispositivo um tanto escondido que o Congresso Nacional tem competência exclusiva para “autorizar referendo e convocar plebiscito” (Constituição Federal, art. 49, inciso XV).

Como vocês veem, a nossa inventividade jurídica é extraordinária. Os deputados e senadores, eleitos pelo povo, são ditos seus representantes ou mandatários. Em lugar algum do mundo, em momento algum da História, o mandante deve obedecer ao mandatário. Bem ao contrário, este tem o dever de cumprir fielmente as instruções recebidas do mandante. Aqui, instituímos exatamente o contrário. O povo, dito soberano, só tem o direito de manifestar a sua vontade, quando autorizado pelos mandatários que escolheu...

Outro instrumento de verdadeira democracia, isto é, de soberania popular autêntica e não retórica, como a que sempre existiu no Brasil, é o recall, isto é, o referendo revocatório de mandatos eletivos. O povo que elege tem o direito de revogar o mandato do eleito, quando bem entender. Por exemplo, alguém se elege Prefeito e, antes de tomar posse, vai a cartório e lavra uma escritura pública pela qual se compromete a não renunciar ao cargo no curso do mandato. Dois anos depois, porém, renuncia ao cargo de Prefeito para se candidatar ao governo do Estado. Pois bem, se existisse entre nós o recall, tal como ocorre em nada menos do que 18 Estados da federação norte-americana, o povo daquele Município teria o direito de destituir o Prefeito que fez aquela falsa promessa.

Hamilton Octavio de Souza - Isso deveria entrar na reforma política que está sendo ensaiada há anos?

Pois, então, essa reforma política não se faz enquanto não se muda o centro de poder. Eu trabalhei seis anos no Conselho Federal da OAB. Isso que eu estou dizendo a vocês: desbloqueio de Plebiscito e de Referendos, facilitação de iniciativa popular, o recall, ou seja, o povo elege, o povo também institui... “Como é, senhor fulano, o senhor quando foi, se candidatou a prefeito e o senhor foi ao tabelião e fez uma declaração de que cumpriria o mandato até o último dia, depois o senhor, no meio do seu mandato de prefeito, o senhor se candidatou a governador do Estado. Pois bem, o senhor não merece a nossa confiança, vamos fazer um abaixo assinado para a realização de nova Consulta Popular. O senhor fulano de tal deve continuar exercendo cargo de prefeito? Não”. Ele é destituído. Isso se chama recall e existe em 18 estados da Federação Americana. Portanto, não se trata de uma manobra, de um instrumento revolucionário. E, aliás, Cuba não tem recall, como todo mundo sabe.

Hamilton Octavio de Souza – O senhor falou do povo ver reconhecidos os seus direitos. Como está esta situação dos direitos no Brasil? O que o senhor acha que funciona e o que não funciona?

Houve, sem dúvida, uma mudança nos últimos 30 anos, a partir do fim do regime militar. Mas, esse progresso é sempre lento, porque se faz sem organização. A função verdadeira dos partidos políticos deveria ser a formação do povo para que ele, povo, exercesse a soberania. É preciso, portanto, começar a criar outra espécie de partido político, que não persiga o poder para si, mas ajude o povo a chegar ao poder.

Nós temos no Brasil duas constituições. Pela Constituição oficial, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único). Mas a Constituição real, a efetivamente aplicada, tem uma formulação diferente: “Todo poder emana dos grupos oligárquicos, que o exercem sempre em nome do povo, por meio dos representantes, por este eleitos”. Segundo ambas as fórmulas, o que conta é a impressão geral de que quem manda é o povo.

Hamilton Octavio de Souza - O senhor fala em formar novos partidos?

Exatamente. Hoje, no mundo inteiro, os partidos perderam a confiança popular. Li recentemente os resultados de uma pesquisa de opinião pública sobre confiança do povo em partidos políticos. Segundo essa pesquisa, no Brasil apenas 11% dos cidadãos confiam nos partidos. No mundo inteiro, ou seja, em 19 países onde foi feita a pesquisa, os partidos tinham a confiança de não mais do que 14% do povo. O que decorre, portanto, dessa pesquisa de opinião pública é que o povo passou a reconhecer que os partidos políticos agem em proveito deles próprios e não do povo. É indispensável e urgente, portanto, suscitar a criação de novos partidos políticos, com características verdadeiramente democráticas. Mas, isto é muito difícil, porque pressupõe uma mudança de mentalidade, o propósito de atuar politicamente em proveito do povo e não em benefício próprio.

Hamilton Octavio de Souza - O senhor falou em oligarquia, que nesse processo a oligarquia controla. O senhor chegou a dizer que a oligarquia é composta por empresários...

De militares também...

Hamilton Octavio de Souza - Militares, banqueiros e tal...

E do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa. Ela conta, episodicamente, com o apoio episódico de algumas instituições, como por exemplo a Igreja Católica.



Hamilton Octávio de Souza - Essa oligarquia, aqui, vem conseguindo se manter com o poder, no Brasil, apesar das mudanças, mas é ela que continua ainda sendo... quer dizer, ela tem um comando, ela tem uma orientação, ela está ligada ao que se chama capital internacional?

Ela tem, evidentemente, uma orientação muito firme. Veja, por exemplo, os meios de comunicação de massa. Quando eu era jovem, alguns professores diziam: “Meninos, vocês têm que ler todos os jornais do dia.” Os jornais eram muito diferentes uns dos outros. Hoje, os grandes jornais dizem exatamente a mesma coisa, têm todos a mesma orientação. Só muda o estilo e muda cada vez menos. O estilo dos grandes jornais tende a ser o mesmo. As revistas: há revistas mais sensacionalistas, há revistas nojentas no que diz respeito à defesa de privilégios, todos nós conhecemos, não é? Mas, todas elas são fundamentalmente defensoras do sistema capitalista e da ausência de democracia autêntica. É óbvio. A rede televisiva controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, entrou recentemente em conflito com um grande jornal de São Paulo. Mas na defesa do sistema capitalista e do regime oligárquico, eles estão unidinhos.

Tatiana Merlino - Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a diferença entre os brasileiros e os outros países da América Latina que estão punindo os torturadores da ditadura. Por que o Brasil não consegue julgar esses torturadores da ditadura?

Porque nós somos dissimulados. Os hispânicos, em geral, são abertos e francos. A crueldade deles é aberta. A nossa é sempre dissimulada, sempre oculta, porque nós temos que dar uma aparência de civilização, de democracia... Nos países hispano-americanos, a repressão militar nunca foi escondida e eles tiveram o cuidado de pôr a justiça fora disso. Nós, não. Não só o Poder Judiciário continuou a funcionar normalmente, como a Justiça Militar, que em si mesma é hoje uma aberração, teve a sua competência ampliada. Então, quando houve a reviravolta no Chile, na Argentina, no Uruguai, todos os chefes de Estado do regime repressivo foram processados, julgados e condenados, além de dezenas de outros oficiais militares. No Brasil, em primeiro lugar, nem se sabe exatamente qual é a identidade de 90% dos torturadores, e, em segundo lugar, quanto aos grandes chefes militares é como se eles não soubessem nada disso, nunca ouviram falar de torturas. Vou mais além. No Brasil, os banqueiros e grandes empresários colaboraram claramente com o regime militar. Os banqueiros de São Paulo, como se sabe, fizeram uma reunião em São Paulo para angariar fundos para criar a Operação Bandeirante, que está na origem dos famigerados DOIs CODIs. Não passa pela cabeça de ninguém, hoje, infelizmente, que esses banqueiros são co-autores dos assassinatos, torturas e abusos sexuais de presos políticos, praticados no quadro da Operação Bandeirante e as operações policiais e militares que a sucederam.

Tatiana Merlino – O senhor disse que os casos no Brasil tem que ser denunciados, enfim, nas instituições internacionais. O STF interpretou que a Lei da Anistia anistiou os torturados. Esse caso pode ser levado para a Corte Interamericana de Direitos Humanos?

Ele já está sendo julgado.

Tatiana Merlino - Sim, mas com o caso da Guerrilha do Araguaia.

Sim, mas o caso do Araguaia é um aspecto do total. A Corte Interamericana de Direitos Humanos adiou o julgamento para novembro por causa das eleições no Brasil, para não dar a impressão de interferência nas eleições.

Hamilton Octavio de Souza - Pode haver uma condenação do Brasil nesta corte?

Sim. Aliás, o Estado brasileiro, os nossos dirigentes em geral, temem as acusações no exterior, porque isto porá a nu a nossa dissimulação no plano internacional. O Brasil quer sempre aparecer, na cena mundial, como um defensor intrépido das liberdades democráticas, da dignidade da pessoa humana, e até está aspirando a ser um dos membros permanentes do conselho de segurança da ONU.

Tatiana Merlino – Se o Brasil for condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, quais as sanções que o Brasil vai sofrer?

Se a Corte Interamericana condenar o Brasil, ela vai exigir que seja revogada a Lei de Anistia de 1979, com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o Brasil pode não cumprir essa exigência. E ficará, então, fora da lei no plano internacional. As consequências disso são indiretas, ou seja, isso vai ser levado em conta se o Brasil vier a pleitear, por exemplo, um cargo nas Nações Unidas, no Conselho de Segurança. Mas, não há um efeito direto.

De qualquer forma, isso certamente vai ser uma derrota política para a oligarquia brasileira. Há um projeto de lei da deputada Luciana Genro, interpretando a lei 6.683 de 1979, que é a Lei de Anistia. Então, é possível que eles digam: “Vamos aproveitar isso e dar uma nova interpretação, agora legislativa (ou seja, a chamada interpretação autêntica) para a Lei de Anistia.”

Isso, na melhor das hipóteses. Agora, se após essa reinterpretação da Lei de Anistia os criminosos do regime militar vão ser condenados, é outra história. A probabilidade de condenação antes de todos eles passarem desta vida para a melhor é praticamente nula.




Fonte: Caros Amigos – http://carosamigos.terra.com.br/







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A VERGONHA DE SER POBRE

CONTARDO CALLIGARIS

Em princípio, a vergonha que sentimos por um ou outro de nossos atos não nos exclui da convivência social. Ao contrário, ela nos convida a resgatar nossa dignidade com novas ações e a voltar para o mundo de cara lavada.
Mas há uma outra vergonha, radical, que pode nos afastar da coletividade, sem retorno: é a vergonha de quem somos, não de algo que fizemos.
Os crimes infamantes, “hediondos”, por exemplo, são atos que jogam uma sombra sinistra e quase definitiva sobre o réu. Nossa sociedade parece pedir, nesses casos, uma vergonha radical, que afete não tanto o crime quanto o próprio “ser” do culpado. Um protótipo, imortalizado pelo romance de Nathaniel Hawthorne, “A Letra Escarlate”, é a punição da adúltera por uma letra inscrita em seu corpo; outro é o costume islâmico de cortar a mão de quem rouba. Em ambos os casos, a punição é uma marca indelével: a vergonha não é apenas relativa aos atos, ela é um estigma duradouro que identifica e exclui quem errou.
Mas não é preciso procurar tão longe: as dificuldades de qualquer ex-presidiário que queira refazer sua vida mostram que, mesmo na administração ordinária de nossa justiça, uma vergonha radical e excludente pode ser parte da punição.
Acaba de sair em livro de bolso “Hiding from Humanity: Disgust, Shame, and the Law” (escondendo-se da humanidade: desgosto, vergonha e a lei), de Martha Nussbaum, professora de ética da faculdade de direito da Universidade de Chicago (a primeira edição é de 2004). Nussbaum mostra que uma vergonha radical ainda produz exclusão nas sociedades modernas. Há a vergonha dos criminosos que pagaram sua dívida com a sociedade, mas continuam manchados por uma aura de infâmia, assim como há a vergonha dos negros, das minorias sexuais, dos incultos, dos miseráveis, dos gordos ou dos fumantes.
A crítica de Nussbaum (que retoma um clássico da sociologia dos anos 60, “Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, de Erving Goffman) baseia-se num grande princípio da moral moderna: nossa vida é livremente inventada e reinventada por nossos atos, portanto, nossos atos podem ser punidos e envergonhados, mas nunca deve ser envergonhada e estigmatizada nossa “essência”.
Há também uma razão pragmática para criticar a vergonha radical e excludente. James Gilligan, professor de psiquiatria da universidade Harvard, pesquisa os efeitos sociais da vergonha que exclui. Um bom resumo de seu trabalho é o artigo “Shame, Guilt, and Violence” (vergonha, culpa e violência), publicado num número especial sobre vergonha de “Social Research”, vol. 70, nº 4, 2003 (www.findarticles.com/p/articles/mi-m2267/is-4-70/ai-112943739).
Desde 1975, as pesquisas de Gilligan mostram que a maioria dos atos criminosos encontram sua motivação no sentimento de humilhação. A perda de dignidade ameaça o sujeito com a perspectiva de uma morte mais cruel do que a morte de seu corpo: uma morte simbólica, que torna vergonhosa sua simples existência. Essa vergonha radical evoca o desamparo de um recém-nascido que não fosse acolhido no mundo por amor algum.
Para Gilligan, a miséria, em si, não é nunca causa da violência, mas a coisa muda se ela for acompanhada pela exclusão social: a vergonha de ser excluído fala mais alto do que os freios morais. Qualquer ato é possível na tentativa desesperada de exigir o respeito dos outros: “Se eles percebem que não têm meios não violentos de se tornarem independentes e de tomar conta de si mesmos (habilidades, educação e emprego), a atividade e a agressividade estimuladas pela vergonha podem se manifestar em comportamentos violentos, sádicos e mesmo homicidas”.
Conseqüência: um sistema penal humilhante, que desacate a humanidade de seus condenados, só produz neles a necessidade de voltar a impor respeito pela violência de seus atos.
Outra conseqüência: uma coletividade pode conviver em paz apesar de grandes diferenças sociais e econômicas, mas à condição que ela não exclua e envergonhe uma parte de seus membros.
Ora, na semana passada, concluí minha coluna observando o seguinte: uma “elite” insegura, decidida a confirmar sua legitimidade ostentando e esbanjando, transforma a pobreza do povo em motivo de vergonha e exclusão, ou seja, induz o povo a sentir vergonha de sua própria condição.
A conclusão fica com Yuri Lotman, o pai da ciência dos signos, num breve ensaio, “Semiótica dos Conceitos de Vergonha e Medo”, que me foi oportunamente lembrado por uma leitora, Ude Baldan (em português, o texto está nos “Ensaios de Semiótica Soviética”"). Lotman afirma que é possível organizar uma coletividade ao redor do medo (medo da punição, medo dos invasores, medo da violência etc.), mas seria uma coletividade animalesca: uma sociedade autenticamente humana é organizada pela freio moral garantido pela vergonha.
Pois bem, quando uma “elite” desprovida dessa vergonha exclui e humilha o povo, a coletividade se organiza do jeito que sobra: pelo medo da violência de seus excluídos.




Folha de S. Paulo







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